Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 3


Capítulo  3
            Um  doze romano, algo que parece um estetoscópio, uma cruz dentro de um círculo. E o que isso quer dizer?  Talvez não queira dizer nada. As paredes da Climério, principalmente do quarto dos internos  são bastantes rabiscadas de canetas, lápis, pincel de quadro branco. Uma  memória  dos internos que já passaram pela maternidade.  Alguns depoimentos são idiotas, outros interessantes. Houve épocas que  as escritas nas paredes  eram  uma distração  para os que estavam presos de plantão , mas com o tempo  havia tantas  e tantas coisas escritas, que o quarto se transformou em  um quadro  de arte moderna – poluição visual pura.  Mas havia no quartos dois depoimentos que chamavam-me a atenção. Um ficava  em baixo do lastro de cima de uma das beliches e dizia:  “a morte é o descanso da vida para aqueles que não sabem viver”.  O outro  falava, nada poético, nada profundo, nada muito inteligente, mas  com um significado  que só um interno saberia decifrar:  “gente, gente , gente englobei a residente”. Eu avisei, nada muito  profundo ou poético,  mas  como diria um amigo meu, como a mente humana é complexa, há coisas que não é possível decifrar , apenas vivenciá-la.  Eu mesmo já tinha sido “englobado” pela Residente uma, duas vezes. Miserável.   Gestante pronta para pari, eu  já todo paramentado, os dedos coçando, só esperando o  recém-nascido, quando chega a Residente com um sorriso amarelo na cara. E faz todo o parto. Completamente.  Lá vai mais um interno saindo da sala de parto sem nem  sujar as luvas. Paciência.  Oh palavrinha sem jeito.   Pois bem, o  mais provável é que eu já tenha visto estás marcas antes, mesmo sem prestar atenção muito nelas. E  com diria Freud, o meu inconsciente apenas sublimou a sua existência  no  pesadelo... Foi isso. Com certeza. Não há outra explicação...

Tocô- toco -  tocõ

O  Maldito som da cardiotoco  novamente.  Fui o mais rápido que pude até o pré-parto. O som continuava. Olhei o cardiotocógrafo, desligado, tudo calmo, nada fora do lugar. Ou quase nada. A técnica não estava  mais dormindo na  cadeira. Tinha sumido. Ou apenas tinha indo no banheiro. Nestas horas a nossa mente faz conjecturas absurdas. É preciso concentrar. O som parecia vim da sala da televisão,  caminhei até lá,  tudo  como antes, os técnicos espalhados pelo sofá, a sala escura. Não totalmente.   Na sala de televisão havia uma porta que dava acesso a sala do computador. Uma sala pequena, confortável, com sofá,  uma mesa, cadeiras  e, por assim dizer, um computador.   A luz escapava pelas frestas da porta.   Andei em sua direção e a cada passo o som da carditotoco ficava mais alto. Toco-toco-toCO-TOCO. Nunca, sob nenhuma hipótese o cardiotocógrafo estaria na sala de computador,  seja o que fosse que estivesse fazendo o som , certamente não estaria dentro daquilo que   considero como  “ tecnicamente normal”.  Segurei firme a maçaneta da porta, o medo me fez parar, poderia simplesmente desistir agora,   não abriria a porta, voltaria para minha cama,  acordaria amanhã e evoluiria os meus pacientes na enfermaria.  Perfeito. Seria um CO normal, como outro qualquer. Hesitei por alguns instantes. Dane-se. Abri a porta. 
...A sala estava  parcialmente iluminada,  a luz vinha do computador que estava ligado. Na tela do computador  apareceu um traçado característico. O   traçado do cardiotocógrafo, com uma linha de base  em oitenta bpm. O normal nunca era menos que  cento e vinte. Depois os símbolos apareceram na tela  por alguns segundos. Por fim,  um rosto de um bebê com a pálpebra  esquerda lacerada. A tela ficou toda branca e o computador  desligou. O som  finalmente desapareceu.

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