A Consulta - No divâ da Loucura
06:16 Helton Ojuara
Prólogo
Cidade de Salvador,
Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES)
Tempo presente
Gostaria de dizer que era mais um dia tranqüilo e ensolarado na cidade de todos os santos. Mas isto não seria a verdade. O dia já começou estranho. Eram quase nove horas da manhã chuvosa de uma segunda feira, vestíamos o jaleco enquanto caminhávamos a passos curtos em direção ao Hupes. Eu , Cesarino e Lobão andávamos mais lentamente para postergar a próxima aula do que pela dificuldade de por a vestimenta. Psiquiatria, a primeira aula de muitas que viriam. No quarto ano de medicina já temos experiência bastante para gostarmos de algumas coisas e suportarmos outras. E Psiquiatria é algo que a maioria apenas suporta.
Já tínhamos subido os degraus da faculdade de medicina e o hospital se aproximava lentamente.Uma chuva bem fina começava a cair enquanto Lobão, como sempre, fazia questão de satirizar a minha opção de fazer ortopedia como residência médica. Cesarino apenas ria. Subimos as escadas do estacionamento em direção ao hospital.
- Perai tenho outra. Como é que agente faz para esconder dinheiro de um ortopedista? Colocando dentro de um livro. Hahahaha – esculachava Lobão enquanto tentava se proteger da chuva colocando a sua mochila sob a cabeça
- é isso mesmo. Concordava Cesarinno
- Isto nem merece comentário. Disse eu enquanto olhava parta o céu. Os degraus acabavam, a chuva insistia em cair mais intensamente. Olhei para o lado do hospital e a porta do Pronto-Atendimento, que ainda estava em construção, se encontrava aberta. Chegaríamos mais rápido a aula e escaparíamos da chuva se fossemos por lá.
- Vamos pelo PA. A chuva está ficando mais forte.
- Mas a aula não é no terceiro andar? Disse Lobão.
- É, por isso mesmo. Sairemos da chuva e ainda chegaremos mais rápido.
Aumentamos o passo em direção ao PA. Lobão incansavelmente insistia no tema.
- Olhe, essa é nova , sério, o que é que o Ortopedista vê quando olha para o céu? Vamos diga. Vou dar uma pista , ele ... – a voz é cortada por um som abafado.
Eu estava olhando fixamente a porta do Pronto-Atendimento do hospital quando sentir próximo ao meu ombro o ar sendo cortado por um vulto. Um som de carne e osso arremessado ao chão. Nem tive como reagir, o mundo desapareceu, eu desapareci. Meu campo visual fechou-se em um ponto . Demorei alguns segundos para identificar o que era. Inacreditável. Um homen , de meia altura, caucasiano e um pouco calvo acabara de se atirar do terceiro andar do Hupes. Um homen com vestes brancas. O peito voltado para o chão espalhado pela calçada cinza. Pernas e braços abertos. Sua cabeça acertou de cheio o calcamento. Sua nuca abriu como uma panela de tampa, espalhando seu conteúdo encefálico em cima do meu sapato. Olhei para mim e um risco fino do seu sangue cortava o meu jaleco branco. O contraste entre o branco e o vermelho vivo. Não me lembro o que aconteceu depois. Alias depois disso tenho tido dificuldade de definir o que aconteceu antes ou depois. O tempo tornou-se impreciso.
Cidade de Salvador,
Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES)
Tempo presente
Gostaria de dizer que era mais um dia tranqüilo e ensolarado na cidade de todos os santos. Mas isto não seria a verdade. O dia já começou estranho. Eram quase nove horas da manhã chuvosa de uma segunda feira, vestíamos o jaleco enquanto caminhávamos a passos curtos em direção ao Hupes. Eu , Cesarino e Lobão andávamos mais lentamente para postergar a próxima aula do que pela dificuldade de por a vestimenta. Psiquiatria, a primeira aula de muitas que viriam. No quarto ano de medicina já temos experiência bastante para gostarmos de algumas coisas e suportarmos outras. E Psiquiatria é algo que a maioria apenas suporta.
Já tínhamos subido os degraus da faculdade de medicina e o hospital se aproximava lentamente.Uma chuva bem fina começava a cair enquanto Lobão, como sempre, fazia questão de satirizar a minha opção de fazer ortopedia como residência médica. Cesarino apenas ria. Subimos as escadas do estacionamento em direção ao hospital.
- Perai tenho outra. Como é que agente faz para esconder dinheiro de um ortopedista? Colocando dentro de um livro. Hahahaha – esculachava Lobão enquanto tentava se proteger da chuva colocando a sua mochila sob a cabeça
- é isso mesmo. Concordava Cesarinno
- Isto nem merece comentário. Disse eu enquanto olhava parta o céu. Os degraus acabavam, a chuva insistia em cair mais intensamente. Olhei para o lado do hospital e a porta do Pronto-Atendimento, que ainda estava em construção, se encontrava aberta. Chegaríamos mais rápido a aula e escaparíamos da chuva se fossemos por lá.
- Vamos pelo PA. A chuva está ficando mais forte.
- Mas a aula não é no terceiro andar? Disse Lobão.
- É, por isso mesmo. Sairemos da chuva e ainda chegaremos mais rápido.
Aumentamos o passo em direção ao PA. Lobão incansavelmente insistia no tema.
- Olhe, essa é nova , sério, o que é que o Ortopedista vê quando olha para o céu? Vamos diga. Vou dar uma pista , ele ... – a voz é cortada por um som abafado.
Eu estava olhando fixamente a porta do Pronto-Atendimento do hospital quando sentir próximo ao meu ombro o ar sendo cortado por um vulto. Um som de carne e osso arremessado ao chão. Nem tive como reagir, o mundo desapareceu, eu desapareci. Meu campo visual fechou-se em um ponto . Demorei alguns segundos para identificar o que era. Inacreditável. Um homen , de meia altura, caucasiano e um pouco calvo acabara de se atirar do terceiro andar do Hupes. Um homen com vestes brancas. O peito voltado para o chão espalhado pela calçada cinza. Pernas e braços abertos. Sua cabeça acertou de cheio o calcamento. Sua nuca abriu como uma panela de tampa, espalhando seu conteúdo encefálico em cima do meu sapato. Olhei para mim e um risco fino do seu sangue cortava o meu jaleco branco. O contraste entre o branco e o vermelho vivo. Não me lembro o que aconteceu depois. Alias depois disso tenho tido dificuldade de definir o que aconteceu antes ou depois. O tempo tornou-se impreciso.
E é por isto que estou aqui Doutor, deitado neste divã, descrevendo o que aconteceu, ou pelo menos o que eu me lembro. Alias gostaria de relatar o que aconteceu nos dias seguintes pois me pareceram muito mais estranhos do que neste dia nublado de uma segunda feira.
A anamnese - Cápitulo 1
18:08 Helton Ojuara
A anamnese
Capítulo 1
“ Os ratos podem nadar por setenta e duas horas seguidas”...
Antes de mais nada gostaria de dizer que nunca cogitei a possibilidade de ter qualquer doença mental. Ir a um psicólogo talvez tenha sido o máximo que eu me permitiria. Ir a um psiquiatra: é o fim do poço. Não me leve a mal Doutor. Não me leve a mal. Mas realmente é isso. De qualquer sorte podemos começar quando quiser.
Meu nome? Bem, isto não importa muito, importa? Não, não me venha com isto. Isto não importa não. Veja bem, nos consultórios médicos o nome do paciente é o que menos importa. O que importa é a doença. É o infarto do leito dezesseis , é o Lupus do leito vinte e sete. Ninguém pergunta como esta seu João do leito onze, pergunta como é que esta o rim do leito onze. Estou no quarto ano de medicina, Serei médico mas agora sou paciente, e como paciente exijo ser tratado com tal. Se ainda não sabe qual é a doença então não me chame de nada. Nos comunicaremos pelo contexto. Fiquemos assim, certo? Ok.
Identificação: Tenho vinte e seis anos. Mas a idade não que dizer nada. Sou cético e cristão. Não acredito nas instituições religiosas. Solteiro, mas como todo mundo também sou casado , diria enrolado.Um homem tem que ter alguém para diluir suas tensões, não é mesmo Doutor?.
QP: Gostaria de dizer “dor de cabeça a setenta e duas horas”, ficaria lindo no prontuário. Mas isto não é possível. É mais que isso. A queixa principal mais correta é: me sinto estranho a tantas horas. Tantas. O tempo relativizou-se involuntariamente. Prossigamos.
HMA: podemos deixar por último?. Sei como se processa uma anamnese e se formos falar da história da moléstia atual agora perderemos o foco, deixemos por último Doutor.
HPP: Não, não sou diabético, nem hipertenso, nunca fiz nenhum tipo de cirurgia, nunca tive qualquer DSTs. Sempre fui saudável como uma rocha. Rocha no que se refere a resistente, forte. Não em relação a fria , a morto. Morto não.
HP: meus pais são vivos e saudáveis, e que Deus os preserve assim para todo o sempre. Meu pai tem cinqüenta e sete e minha mãe cinqüenta. Tenho uma irmã que com a exceção de um mioma nunca teve nada. Algum transtorno mental? Não. Não. ... Bem, minha mãe sempre teve mania por doença. Mania por achar que está doente. Certa vez ela fez uma laparostomia exploradora da pelve. Pois achava que tinham um tumor. Traço histérico pode-se dizer.
Deambulei na idade certa , nunca tive dificuldade de aprendizado, minha coitarca foi aos dezesseis anos. Tenho um relacionamento estável a cinco anos. Ultimamente tenho tido aversão a ratos e baratas. Mais a ratos.
Em relação ao interrogatório sistemático : cabeça , pescoço, pele e fâneros, tórax, abdômen, e extremidades coloque ndn. Não significa muito. Inclusive é incorreto mas todos colocam isto. Não é mesmo? Podemos falar da HMA agora doutor.
HMA: Como já disse, recentemente presenciei um acidente. Acidente não um suicídio. Bem nos mês pés o desgraçado caiu. Tanto lugar no universo... lei de Morf. Paciência. Mas o problema todo começou depois no outro dia quando começou a aula de psiquiatria. Terceiro andar do HUPES, era terça-feira. Ainda chovia muito em salvador, e como todo mundo sabe o transito em salvador desgraçadamente para quando chove. Não justificando o meu atraso, mas já justificando. Subir as escadas do HUPES o mais rápido que pude. Em um instante já estava no terceiro andar. As portas de psiquiatria sempre ficavam fechadas. Eram portas grades com janelas pequenas, de vidro. Bati na porta, esperei a enfermeira abrir, cinco minutos depois adentrei. Uma, duas portas a esquerda e lá já estavam uns oitos colegas meus, discutido o já possível, caso da aula. Sentei-me. O professor lançou-me um olhar cortante. Abotoei o jaleco ainda um pouco molhado da chuva e justifiquei mentalmente o meu atraso. Ele continuou.
- bem turma, vou trazer um paciente interessante para vocês analisarem., Ele está sendo tratado aqui há dois meses. Tem esquizofrenia. Começou o quadro quando tinha dezessete anos. Logo após a separação dos pais. Abriu o quadro com uma idéia deliroide de que a mãe traia o pai e por isso ela o perseguia. Era filho de um figurão de Salvador. Sempre que surtava a mãe dava uma baita surra nele. Tratado e medicado quando adulto passou muito tempo sem surto. Tinha uma vida praticamente normal, trabalhava na fazenda da família, como vaqueiro, e bom vaqueiro dizem a familia. Casou-se. Nunca teve filhos. Sempre teve orgulho de ser parecido com Jô Soares, não parece mais. Passou quase vinte e oito anos sem surtos. Mas todo mundo sabe uma vez esquizo sempre esquizo. Recentemente teve uma crise que abriu o quadro com uma outra idéia deliróide . O delírio da agora é que após a morte do seu pai sua mulher está de olho na sua parte da herança. Ela a internou aqui para poder gastar o seu dinheiro na Europa. Estamos investigado uma outra patologia associada Um CA provavelmente. O paciente tem 45 anos. Vou traze-lo aqui.
O professor saiu. O meus colegas me perguntaram algo sobre o dia anterior. Não ouvi bem o que era. Estava me sentindo meio surdo...hora ouvia as coisas hora não. Distrai-me olhando a sala. No centro tinha uma mesa grande onde os estudantes ficavam ao redor, a velha idéia da mesa redonda. As paredes brancas eram calmas e repletas de quadros. Provavelmente feitas pelos próprios pacientes. Os desenhos se resumiam basicamente a borboletas e jarros com flores. A exceção de um quadro grande que ficava a minha frente. Curiosamente as borboletas e os jarros pareciam ratos e baratas coloridas. Com diversas cores. Ratos coloridos. Olhei ao redor e não vi nem Cesarinno nem Lobão. O professor chegou trazendo consigo o paciente: Um homem de meia altura, caucasiano, um pouco calvo e com vestes brancas. Mal pude acreditar. O paciente, o caso de hoje, era o homem que eu tinha visto morrer ontem.
Capitulo 2 - A Consulta: No Divã Da Loucura
10:59 Helton Ojuara
Capítulo 2
“O animal com seis pernas mais rápido que existe é a barata”
Perturbado não seria a palavra mais correta para se usar quando se está em uma ala psiquiátrica do hospital, mas foi como me senti ao perceber que o homem que eu tinha certeza que estava morto agora estava ali, sentado , há alguns metros de mim. O choque foi tão grande que eu simplesmente não conseguia mais olha-lo. O meu corpo estava com uma trava meta-física.. Eu poderia conversar com todos na sala, olhar para quem eu quisesse, mas quando o meu campo de visão ameaçava ver o homem a trava invisível se fazia presente.
O homem começara a falar sobre a sua vida, sobre porque estava ali. Não que eu estivesse ouvindo, mesmo porque, além de não conseguir ver o homem, percebo que também não o escuto direito, como se as palavras estivessem embaralhadas - uma algaravia – mas sei que ele falava sobre a sua vida porque essa era a prática médica. Nós ainda quanto estudante aprendemos que ouvir o paciente é o melhor caminho. Só esquecemos isso quando ganhamos o carimbo de médico. De forma geral, um paciente é convidado pelo professor para nos expor sua vida com a garantia de que seu segredo morrerá conosco. Posteriormente, quando o paciente termina, e sai da sala, discutimos o seu caso no grupo, seu tratamento. Durante mais de nove mil horas de curso tentamos aprender medicina. Apesar de tudo isto é somente quando nos formamos que descobrimos que ainda não é o suficiente. O que Doutor.? Desculpe. Desculpe. Estou divagando. O que foi que o senhor perguntou mesmo? Sei , certo, sobre o que falou o homem? Sinto muito. Mas como eu disse estou quase surdo, Lerdo, até uma barata naquela sala teria o raciocínio mais veloz do que eu. Já lhe falei que odeio baratas? Tá, tá , vou voltar ao caso. Estou protelando, pois acho que é neste ponto que começo a ficar... perturbado. Eu não suportava ouvir a voz confusa do homem. Uma sensação angustiante foi crescendo em mim. Queria sair da sala de qualquer forma. O ar estava irrespirável. Levantei peguei o celular e fingir atender uma ligação, sair rapidamente da sala. Parei no corredor. Encostei as minhas costas na parede, queria raciocinar melhor, isto não poderia está acontecendo, havia algo de errado. Olhei o celular, na tela marcava SEGUNDA FEIRA?!, eu não acreditei, segunda? Não podia ser, hoje é terça. Aquele homem morreu na segunda. Hoje? Como seria possível? O meu corpo agora se escorava na parede, - a casa caiu. Eu já não sentia o meu corpo, quase tudo anestesiado. Foi quando uma mão fria e seca segurou o meu ombro, virei-me - dois olhos verdes penetraram em minha mente e tudo ficou preto.
...
-Jacobina?
Ouvi alguém chamar o meu nome?
-jacobina! Preste atenção.
A luz clareou lentamente a minha visão - estava sentado na sala novamente.Sentado. O professor falava algo. Tudo em minha mente estava meio que mergulhado em álcool. Foi quando percebi que ele falava de uma mulher de preto...
que tinha grandes olhos verdes...
Capitulo 3 - A Consulta: No Divã Da Loucura
01:32 Helton Ojuara
“Os ratos são capazes de ficar submersos na água por até três minutos...”
Capítulo 3
A mulher de preto ainda era uma menina quando tudo aconteceu . A família tinha uma vida luxuosa no Corredor da Vitória, o metro quadrado mais caro de salvador. O pai era um empresário rico e famoso. Além de dono de uma rede de óticas ele era um grande cineasta. Como em um conto de fadas Hollywoodiano , o autor começaria a historia dizendo: Um belo dia de uma manhã clara uma família feliz resolveu visitar a vovó. Mas as semelhanças com um conto de fadas acabariam por aí.
- vamos filha, chame seu irmão ele ainda está dormindo. Estou indo pro carro, sua mãe e sua irmã já estão lá, não demore.
- Mas pai...
-Nada de mas , adiante-se, não vamos nos atrasar . Sua avó vai adorar rever vocês.
- Mas pai, é que... é que eu tenho uma prova na segunda, ... eu queria ficar para estudar.
A prova obviamente era mentira. Mas com jeito e um pouco de persistência o pai a deixou juntamente com o irmão que ainda dormia. Por volta das 14 horas daquele mesmo dia aquela menininha que havia mentido para não ir na viajem com os pais soube que seu pai, mãe e sua irmã mais velha haviam morrido em um acidente de carro. Ela e o irmão escaparam. A mentira a salvara a vida, mas não a alma.
No enterro a chuva fina de um dia inteiro dava o tom do clima.O cemitério do campo santo estava cheio de amigos, os jornalistas e curiosos. A menina,que pela primeira vez visita preto não saiu de junto do caixão. O seu tio segurava a sua mão. Em vez em quando olhava para ela com um olhar meio que de pena meio que de tristeza. A única coisa que conseguiu dizer foi:
- Ohh, meu anjo, sinto muito... muito mesmo. Mas tenha forças.... pelo menos você e seu irmão estão vivos não é mesmo?
Vivos... vivos... vivos... um eco se processou na cabeça da menina de preto.Nos anos que se seguiram muita coisa mudou na sua vida, a maioria delas foram esquecidas, mas esta palavra toda noite ecoava . Vivos? vivos quem?
Agora ela estava ali. Sentada em nossa frente, em meio a um circulo de estudantes de medicina e o meu professor , um psiquiatra. Ela estava sentada na cadeira com um vestido preto, o corpo balançando para lá e para cá. Um cabelo meio ruivo, despenteado batendo no meio das costas. O olhar perdido no nada. Deveria ter uns 49 anos mais parecia um pouco menos. O corpo curiosamente era forte...malhado?.
O professor perguntou para ela se ela não gostaria de dizer para a turma porque ela estava ali.- ela permaneceu inerte, os pés entrecruzados , o tronco para frente e para trás, e o olhar perdido no horizonte. O professor fez diversas investidas, vamos fale sobre sua profissão, sua vida etc etc etc.Durante três minutos com uma persistência implacável – Nada. Árvore vazia balançando ao sabor do vento.
A explicação que tivemos é que ela chegou no HUPES trazida pela filha. Estava em um estado catatônico, uma depressão profunda. Vez ou outra balbuciava alguma coisa. Pelo relato da filha e pelo pouco que seconseguiu colher da mulher de preto, o professor chegou a conclusão queela era apaixonada pelo pai. E quando o pai morreu esse amor não completou o seu ciclo normal, tornando-se uma idéia esquizóide. Entender isto é ate razoavelmente fácil, acreditar é que é outra história.
Neste momento eu me concentrava em outra coisa. Recordar. A medida que tudo acontecia eu tentava refazer os meus passos, como fui parar sentado novamente na sala de psiquiatria?. A ultima coisa que lembrava era de ter visto os grandes olhos verdes da mulher de preto e = puf =, nada mais. Uma escuridão completa. O homem que eu tinha visto morrer nem se encontrava mais lá. O que passava pela minha cabeça era ou que eu estava louco ou que tinha um tipo de Alzheimer precoce. Convenhamos, duas hipóteses desgraçadas.
Repentinamente a mulher de preto balbuciou algo .A sala emudeceu. Ouvia-se a batida do próprio coração.
-Estive no inferno... Disse ela secamente, sem emoção - .Ninguém deveria ir lá...cheio de caveiras, aquele cheiro de enxofre, passei muitos anos lá...Mas o anjo Gabriel me salvou. E quer saber de uma coisa? O anjo Gabriel é lindo e tem panturrilhas enormes...
Capítulo-4 - A Consulta: No Divã da Loucura
19:27 Helton Ojuara
Capítulo 4
A mulher de Preto viaja em suas memórias. Ela se ver adolescente, entra no quarto escuro e abafado do irmão. Inúmeras fotos de mulheres nuas e roqueiras coladas na parede. O irmão deitado largado na cama, olhando para o nada.
- Maninha...não sei o que você está fazendo aqui, mas aproveite e me dê este cigarro, ta aí em cima da mesa.
Ela vai em direção do irmão e arranca o copo de bebida da mão dele.
- Que merda! Você só quer essa vida ., álcool , cigarro e pó, que isso! Essa é a vida que você quer para você. Breve receberemos a herança de pap...
- Eu to cagando e andando para a herança de papai. Disse ele levantando da cama. Pegando o copo da mão dela, indo até a mesinha do quarto e enchendo o copo com um whisky vagabundo
A Adolescente de Preto senti uma raiva incontrolável crescer em seu peito. Por alguns instantes ela é tomada de um instinto protetor. Gostaria de protegê-lo, gostaria de não se sentir mais sozinha. Ela caminha até o irmão e derruba o copo com um tapa.
– Eu já disse que não quero você bebendo!
Ele a segura pelo ombro e a empurra contra a parede.
- Quem você ta pensado que é. Se liga. Papai está morto, mamãe está morta! ninguém manda em mim. Alias... eu também estou morto, maninha. Sua mentira condenou a todos. . Eu deveria ter morrido com eles. Você não tinha o direito de ter me tirado isso... Você também está morta para mim. Vê se me esquece. Deixe-me morrer em paz. Saia do quarto. Saaaia!.
E ela sai com os olhos nadando em lágrimas.
As memórias são naves do tempo e viajam em uma velocidade fantástica, pousando em uma outra fase da vida. Já adulta a Mulher de Preto encontra a arte, monta uma Escola de ballet com a herança que recebeu. Freqüenta também a Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Resolve fazer teatro. Conhece outras cidades. Mas uma das mais importantes talvez tenha sido o rio de janeiro.
Copacabana, nove da noite.
Um ar boêmio na praia. A Mulher de Preto e mais duas colegas resolvem andar um pouco, sentir a textura da areia, a brisa noturna que sopra em direção ao mar. Pegam um violão convidam mais algumas pessoas e decidem fazer um Lual.
Lá pelas onze horas da noite já havia se formado uma roda improvisada na praia com uma fogueira artificial, daquelas com luzes no lugar do fogo. No ambiente algumas mulheres, alguns homens. Tudo está úmido e regado a bebida e música de violão mal tocado. A Mulher de Preto vê alguém que a chama a atenção. É um homem, sorriso doce, fraternal, lembrava o sorriso do seu pai. Ele encosta-se nela, pergunta o seu nome. Ela responde de forma clara e meiga - nada de nomes hoje, somente nossos espíritos irão falar. Ela lembrou que curiosamente vestia branco nesta noite, tomou mais um gole de bebida e depois o beijou como nunca havia beijado outro homem. Aquele seria o inicio de dois longos anos juntos.
A mulher de preto se casou- relacionamento difícil. Ela tem dificuldade de manter uma relação amigável e duradoura com qualquer pessoa, seja com o homem a ama, ou com qualquer outra pessoa. As coisas andam difícil, muitas brigas, os dois estavam morando na casa da família dele. Certo dia depois de mais uma noite de porre dela, ele levanta da cama dizendo que ela precisava arranjar uma a ocupação, que essa vida de boemia já estava indo longe demais. A mulher de preto nem dá atenção, levanta ruidosamente se olha no espelho – está um trapo. Vai ate o banheiro, pega uma caixinha que estava sobre o lavatório. – a moça da farmácia falou que era bom. Estava com a menstruação atrasada há mais de um Mês. Poderia não ser nada. Reflexo das varia noites perdidas. Mas o que é que custa não é mesmo?. Urinou num frasco e colocou uma fita de papel dentro. Cinco minutos depois havia na fita uma linha azul e outra vermelha. Sua visão escureceu e ela caiu no banheiro desmaiada. - estava grávida.
A gravidez mudou a sua vida . Era outra mulher. Alimentava–se bem, andava todo dia pela manhã para manter a forma, não perdia mais noite. Uma vez ou outra uma dor profunda lhe acometia a alma. Não sabia dizer o porque . Então ela acariciava a barriga, sabia que sue nenê estava ali e uma paz lhe preenchia o espírito. Quando a barriga já se fazia vistosa com seus oito meses e meio de gestação uma dor subida lhe tomou, sentiu um líquido escorrer entre suas pernas. O bebê já ira nascer. A dor de tela foi grande , mas não tão grande quanto a dor de saber que a sue nenê não estava mais dentro dela.
O marido dela estava feliz naquele dia, todos estavam. A luz reluzia entre a janela do hospital e o quarto. A mesa com flores, rosas. Ela na cama com a criança no colo. Todos estavam felizes, mas a Mulher de Preto não. Não queria ser egoísta, mas um pensamento se repetia em sua mente. Naquele exato momento ela não queria um bebê, ela queria uma mãe. Sentiu-se culpada por isso. Aquela pessoazinha que estava ali em seus braços saiu do seu corpo, do seu ventre. E foi com o nenê no colo – uma linda menininha - que a mulher de preto sentiu que no parto tinha perdido a melhor parte dela - a parte feliz.
Capítulo 5 - A consulta: no divâ da loucura
13:20 Helton Ojuara
Capítulo 5
No sertão os rios que não são perenes secam no inverno. A sala de psiquiatria do HUPES estava em um silêncio quase sobrenatural. Nada se movia. O professor e nós esperávamos uma reação da Mulher de Preto. Mas nada. Ela tinha balbuciado algo há pouco. Depois de muita insistência para que ela falasse. Chegou a levantar. Falou que sentia um cheiro de enxofre. Que seu corpo fedia a enxofre.
- passei quatro anos no inferno. Longos quatros anos. Cheio de caveiras. Meu pai era dono de um terreiro de candomblé. Era dono. Eu tinha que ser filha de santo. Mas ele morreu. Meu pai era tão lindo. Lá tinha um monte de caveiras. Horrível. Ninguém deveria ir ao inferno. Mas o anjo Gabriel me salvou. Era alto, cabelos cacheados. Tinha uma panturrilha enorme. Abriu a porta de outra dimensão e eu escapei... ele era lindo.
A mulher de Preto abriu um sorriso. Depois ela se sentou e as emoções se apagaram. Agora estávamos ali esperando algo mais. Mas ela estava seca. Era apenas uma casca vazia. Sua memória vagava em outro lugar, em outro tempo.
A mulher de Preto abriu um sorriso. Depois ela se sentou e as emoções se apagaram. Agora estávamos ali esperando algo mais. Mas ela estava seca. Era apenas uma casca vazia. Sua memória vagava em outro lugar, em outro tempo.
Nos dois anos que se seguiram, após o nascimento da filha, foram os mais nebulosos para a Mulher de Preto. Ela voltou a beber, voltou a perder noites, voltou a sentir uma dor profunda e sem sentido. O marido não aquentou e pediu o divórcio, não só isso, pediu também a guarda da menina, o que não foi difícil para o juiz decidir com quem ficaria a menina, afinal a mulher de preto não sabia nem cuidar dela mesmo. O mundo desabou .
Os anos posteriores foram de poucas lembranças e de muitas lacunas. Ela lembrava apenas que quando a menina tinha quatro anos ela fez uma ligação. Já há algum tempo estava proibida de falar e de se aproximar da menina, a não ser nos finais de semana. O telefone toucou um vez.. duas... Não queria dizer mas se não dissesse morreria. Uma voz doce de uma criança diz alô.
– oi meu amor, como vai meu bebê? você não quer ficar com a mãe não?. Quer? Eu preciso de você, preciso muito, volte para mim. Diga a seu pai que quer ficar comigo, diga, diga meu amor, diga senão eu...eu vou me matar, prometo que vou , me mato hoje, ouviu meu bebê, ouviu meu anjo?.
Mas estas tentativas de persuasão não funcionaram, até que movida por uma força maior, por assim dizer, ela começa uma seqüência de tentativas de suicídio. Como todos sabem as mulheres tentam mais suicídio, mais felizmente são mais incompetentes neste sentido. E assim lá se vai uma, duas , três, quatro , cinco , seis...varias tentativas. A maioria tomando medicamentos em excesso, outras ameaçando se jogar de um prédio. Todas tiveram como conclusão o internamento psiquiátrico. Quando a menina já tinha em torno de onze anos, a Mulher de Preto cortou o próprio pulso, quase morreu, isso foi a gota d´agua para que a menina decidisse morar com a mãe.
– tenho que cuidar dela. Argumentou com o pai.
Os anos se passaram, as crises foram embora. A mulher de preto voltou a dá aula de ballet, não bebia mais, não perdia mais noite. Porém o mundo é cruel, e a cada dia vivido é um dia mais perto da morte. Em dezembro passado a filha, a então menina, agora com 27 anos resolve se casar. Um casamento simples e rápido na capela de São Pedro. Uma festa bonita. A Mulher de Preto sorria, bebia. O recém casal entrou no carro e foram curtir a lua de mel. A Mulher de Preto voltou para casa sozinha. Falou com o porteiro do prédio, um homem forte, alto, de cabelos cacheados. Que homem bonito, pensou. Entrou no elevador, apertou o botão do sétimo andar. A luz do botão em volta do número sete se acendeu, ela se lembrou que tinha uma conta de luz para pagar, pegou a chave na bolsa, o elevador parou, três passos , e já estava na porta do apartamento, abriu. Um ar quente soprou, as suas sobrancelhas caíram e ela desde então sentiu que nunca mais seria a mesma.
- Pois é meus alunos é isso. Suspirou o professor no inicio do seu discurso. - Com o nascimento da filha a Mulher de Preto transferiu todo amor que sentia pelo pai para a menina. Mas com a separação e a perda da guarda da criança, foi como se tivesse perdido o pai pela segunda vez. Desta forma não fica difícil entender porque ela está desta forma agora que a filha casou-se.
Difícil de entender não é não, mas acreditar nisto já são outros quinhentos. Enquanto a discussão do caso se espalhava na sala eu observava a Mulher de Preto. Parecia que ela nem estava ali. Parecia que nem estava vendo a gente. Uma nesga de luz conseguia passar pela fresta da janela da ala psiquiátrica e raspar o seu vestido preto Eu sentir que ela poderia passar o tempo que quisesse ali, sentada, parada, com aquela pequena margem de luz a aquecer seu corpo. Não importava muito se o lugar estava iluminado, quente ou frio. A mente da mulher de preto estava na escuridão. Viajando. Ora era criança, o pai vivo, lindo e carinhoso, ora estava chegando no apartamento na Graça. Tinha acabado de casar a filha. Abriu a porta e recebeu uma lufada de ar quente no rosto. Entrou. A sala estava abafada. Tinha fechado tudo antes de irem para a igreja. Olhou o quarto da filha, um sentimento nostálgico lhe abateu. Respirou. Tomou um banho, abriu o guarda-roupa, e pegou um vestido. Tinha vestido de todas as cores praticamente: Rosa, vermelho, prata, branco... mas preferiu o preto. Não que estivesse pensado isso, mas inconscientemente - estava de luto. Foi dormir.
Mas assim como Emilly Rose às três da manhã o sono da Mulher de Preto se evaporou, abriu os olhos rapidamente. Nem parecia que já dormia há três horas. Um calor infernal, estava toda suada. Levantou, ligou a luz, foi na cozinha. Bebeu três copos de água gelada. Ainda estava calor. Foi na sala. Abriu a janela do terraço. Nem um maldito vento entrou. Olhou o relógio digital. Três horas, Três horas, Três horas. Piscava freneticamente em vermelho. Um barulho no quarto a fez tirar os olhos do relógio. Deu alguns passos, parou na porta do seu quarto. Olhou... um porta-retrato estava caído. Se acreditasse no mal diria que um capetinha tinha derrubado-o, mas com certeza foi apenas um vento solitário que deve ter entrado pela janela. Pegou o retrato. Ela e a filha. Tão linda. Parecia com o avô. Passou o dedo em cima da foto. Uma dor fina no peito. Os olhos rasos de água. Quase chorava. Mas um novo barulho... agora na sala - maldita janela! Correu até a sala, olhou no chão, mais retratos caídos. Fechou a janela. Andou até os retratos caídos. Abaixou-se . Ia resmungar algo quando um cheiro característico lhe cortou o nariz. Cheiro de algo que somente sentira quando estava no ginásio, no laboratório de química. Um cheiro nem doce, nem salgado, nem azedo, nem básico. Um cheiro de enxofre. Enxofre? Enxofre?! Alguma coisa cai na cozinha, depois no seu quarto. O medo sobe pelas suas pernas e a congela. Pode não ser nada mas pode ser algo na duvida? Fuja!. Correu até a porta da sala. Sua mão escorregava na maçaneta, rápido, rápido, rápido!. Sentiu um vulto crescer em suas costas, e quando abriu a porta da sala já era tarde demais. Agora Havia apenas escuridão.
Capítulo-7 - A Consulta: No Divã da Loucura
12:18 Helton Ojuara
“Os ratos conseguem ficar submersos por até três minutos”
Capítulo 7
Por incrível que pareça a origem da palavra louco vem de uma derivação da palavra lógico. Uma antípoda da coerência, da razão. Mas a semântica por si só não explica muita coisa. Em termos médicos a loucura é uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados fora da normalidade. Por volta do século dezenove,Hegel afirmou que a loucura não seria a perda abstrata da razão: "A loucura é um simples desarranjo, uma simples contradição no interior da razão, que continua presente". A loucura deixou de ser o oposto à razão ou sua ausência, tornando possível pensá-la como a lógica dentro de uma razão ilógica: a loucura de cada um, possuidora de uma lógica própria. Saber disto não me faz mais são.
Agora estava em pé, frente ao meu corpo. Poderia pensar como isto poderia ter acontecido, ou mesmo achar tal fato algo do tipo viagem astral, mas a mente humana é complexa e a única coisa que me veio a mente foi: sou tão diferente do que imaginava. Era magro, o rosto seco, mais pela vida que levava como estudante de medicina do que pela genética. O cabelo calvo e a barba por fazer me dava um tom meio despojado, meio descuidado. Os traços mestiços contrastava com o jaleco branco, parecia mais um paciente do que um médico. Sim doutor, por que não? Cada um de nós temos uma visão de um médico na nossa mente. Eu vejo um médico com alguém com quarenta e um anos, branco, cabelo um pouco ralo, traços nórdicos e com grandes óculos quadrados. Não essa coisa na qual me transformei. Um ser frágil, franzino, sofrido... Típico da população que vive na base da pirâmide. Pois bem, lá estava “eu”, sentado, cheguei perto, fiquei lado a lado comigo, encostei lateralmente o rosto em me mesmo, e me pus a olhar o que antes olhava. Olhava para o Homem Morto, o gordo careca, que nem me parecia tão ameaçador assim. Curioso como essa forma metafísica nos da mais coragem. Uma sensação de onipotência, como se nada pudesse me atingir. Pelo visto, o nosso corpo é uma prisão da qual a morte apenas nos liberta. Agora eu estava ali, mais poderoso que o tempo. Nada se mexia e eu poderia ver e olhar o que quisesse, da forma que bem entendesse. Aproximei-me do professor, um homem com barbas brancas, tinha lá seu sessenta e poucos anos, cabelos grisalhos. Uma camisa social desbotada e uma calça jeans já surrada pelas aulas. Lembro que em um dia desses de aula ela comentou algo interessante; como decidiu fazer psiquiatria. Na verdade não foi uma escolha: faz psiquiatria quem tem uma razão maior que a própria pessoa. Ele mesmo comentou uma vez que o professor dele, no primeiro dia de residência, disse: faz psiquiatria quem mergulha ou no mar de rosas ou no mar vermelho. O mar de rosas referenciava os homossexuais, o mar vermelho aos simpatizantes do comunismo. Os dois, independente de qualquer coisa, faziam parte de uma minoria. Mas este pensamento é de muito tempo atrás. Em uma época em que o Brasil vivia sua ditadura militar. O próprio professor confessou fazer parte da luta armada da época. E esta luta trouxe marcas que ele levaria para o restante de sua vida.
Rio de Janeiro, 1974, bombas e morteiros para todos os lados.