Capítulo 5
No sertão os rios que não são perenes secam no inverno. A sala de psiquiatria do HUPES estava em um silêncio quase sobrenatural. Nada se movia. O professor e nós esperávamos uma reação da Mulher de Preto. Mas nada. Ela tinha balbuciado algo há pouco. Depois de muita insistência para que ela falasse. Chegou a levantar. Falou que sentia um cheiro de enxofre. Que seu corpo fedia a enxofre.
- passei quatro anos no inferno. Longos quatros anos. Cheio de caveiras. Meu pai era dono de um terreiro de candomblé. Era dono. Eu tinha que ser filha de santo. Mas ele morreu. Meu pai era tão lindo. Lá tinha um monte de caveiras. Horrível. Ninguém deveria ir ao inferno. Mas o anjo Gabriel me salvou. Era alto, cabelos cacheados. Tinha uma panturrilha enorme. Abriu a porta de outra dimensão e eu escapei... ele era lindo.
A mulher de Preto abriu um sorriso. Depois ela se sentou e as emoções se apagaram. Agora estávamos ali esperando algo mais. Mas ela estava seca. Era apenas uma casca vazia. Sua memória vagava em outro lugar, em outro tempo.
A mulher de Preto abriu um sorriso. Depois ela se sentou e as emoções se apagaram. Agora estávamos ali esperando algo mais. Mas ela estava seca. Era apenas uma casca vazia. Sua memória vagava em outro lugar, em outro tempo.
Nos dois anos que se seguiram, após o nascimento da filha, foram os mais nebulosos para a Mulher de Preto. Ela voltou a beber, voltou a perder noites, voltou a sentir uma dor profunda e sem sentido. O marido não aquentou e pediu o divórcio, não só isso, pediu também a guarda da menina, o que não foi difícil para o juiz decidir com quem ficaria a menina, afinal a mulher de preto não sabia nem cuidar dela mesmo. O mundo desabou .
Os anos posteriores foram de poucas lembranças e de muitas lacunas. Ela lembrava apenas que quando a menina tinha quatro anos ela fez uma ligação. Já há algum tempo estava proibida de falar e de se aproximar da menina, a não ser nos finais de semana. O telefone toucou um vez.. duas... Não queria dizer mas se não dissesse morreria. Uma voz doce de uma criança diz alô.
– oi meu amor, como vai meu bebê? você não quer ficar com a mãe não?. Quer? Eu preciso de você, preciso muito, volte para mim. Diga a seu pai que quer ficar comigo, diga, diga meu amor, diga senão eu...eu vou me matar, prometo que vou , me mato hoje, ouviu meu bebê, ouviu meu anjo?.
Mas estas tentativas de persuasão não funcionaram, até que movida por uma força maior, por assim dizer, ela começa uma seqüência de tentativas de suicídio. Como todos sabem as mulheres tentam mais suicídio, mais felizmente são mais incompetentes neste sentido. E assim lá se vai uma, duas , três, quatro , cinco , seis...varias tentativas. A maioria tomando medicamentos em excesso, outras ameaçando se jogar de um prédio. Todas tiveram como conclusão o internamento psiquiátrico. Quando a menina já tinha em torno de onze anos, a Mulher de Preto cortou o próprio pulso, quase morreu, isso foi a gota d´agua para que a menina decidisse morar com a mãe.
– tenho que cuidar dela. Argumentou com o pai.
Os anos se passaram, as crises foram embora. A mulher de preto voltou a dá aula de ballet, não bebia mais, não perdia mais noite. Porém o mundo é cruel, e a cada dia vivido é um dia mais perto da morte. Em dezembro passado a filha, a então menina, agora com 27 anos resolve se casar. Um casamento simples e rápido na capela de São Pedro. Uma festa bonita. A Mulher de Preto sorria, bebia. O recém casal entrou no carro e foram curtir a lua de mel. A Mulher de Preto voltou para casa sozinha. Falou com o porteiro do prédio, um homem forte, alto, de cabelos cacheados. Que homem bonito, pensou. Entrou no elevador, apertou o botão do sétimo andar. A luz do botão em volta do número sete se acendeu, ela se lembrou que tinha uma conta de luz para pagar, pegou a chave na bolsa, o elevador parou, três passos , e já estava na porta do apartamento, abriu. Um ar quente soprou, as suas sobrancelhas caíram e ela desde então sentiu que nunca mais seria a mesma.
- Pois é meus alunos é isso. Suspirou o professor no inicio do seu discurso. - Com o nascimento da filha a Mulher de Preto transferiu todo amor que sentia pelo pai para a menina. Mas com a separação e a perda da guarda da criança, foi como se tivesse perdido o pai pela segunda vez. Desta forma não fica difícil entender porque ela está desta forma agora que a filha casou-se.
Difícil de entender não é não, mas acreditar nisto já são outros quinhentos. Enquanto a discussão do caso se espalhava na sala eu observava a Mulher de Preto. Parecia que ela nem estava ali. Parecia que nem estava vendo a gente. Uma nesga de luz conseguia passar pela fresta da janela da ala psiquiátrica e raspar o seu vestido preto Eu sentir que ela poderia passar o tempo que quisesse ali, sentada, parada, com aquela pequena margem de luz a aquecer seu corpo. Não importava muito se o lugar estava iluminado, quente ou frio. A mente da mulher de preto estava na escuridão. Viajando. Ora era criança, o pai vivo, lindo e carinhoso, ora estava chegando no apartamento na Graça. Tinha acabado de casar a filha. Abriu a porta e recebeu uma lufada de ar quente no rosto. Entrou. A sala estava abafada. Tinha fechado tudo antes de irem para a igreja. Olhou o quarto da filha, um sentimento nostálgico lhe abateu. Respirou. Tomou um banho, abriu o guarda-roupa, e pegou um vestido. Tinha vestido de todas as cores praticamente: Rosa, vermelho, prata, branco... mas preferiu o preto. Não que estivesse pensado isso, mas inconscientemente - estava de luto. Foi dormir.
Mas assim como Emilly Rose às três da manhã o sono da Mulher de Preto se evaporou, abriu os olhos rapidamente. Nem parecia que já dormia há três horas. Um calor infernal, estava toda suada. Levantou, ligou a luz, foi na cozinha. Bebeu três copos de água gelada. Ainda estava calor. Foi na sala. Abriu a janela do terraço. Nem um maldito vento entrou. Olhou o relógio digital. Três horas, Três horas, Três horas. Piscava freneticamente em vermelho. Um barulho no quarto a fez tirar os olhos do relógio. Deu alguns passos, parou na porta do seu quarto. Olhou... um porta-retrato estava caído. Se acreditasse no mal diria que um capetinha tinha derrubado-o, mas com certeza foi apenas um vento solitário que deve ter entrado pela janela. Pegou o retrato. Ela e a filha. Tão linda. Parecia com o avô. Passou o dedo em cima da foto. Uma dor fina no peito. Os olhos rasos de água. Quase chorava. Mas um novo barulho... agora na sala - maldita janela! Correu até a sala, olhou no chão, mais retratos caídos. Fechou a janela. Andou até os retratos caídos. Abaixou-se . Ia resmungar algo quando um cheiro característico lhe cortou o nariz. Cheiro de algo que somente sentira quando estava no ginásio, no laboratório de química. Um cheiro nem doce, nem salgado, nem azedo, nem básico. Um cheiro de enxofre. Enxofre? Enxofre?! Alguma coisa cai na cozinha, depois no seu quarto. O medo sobe pelas suas pernas e a congela. Pode não ser nada mas pode ser algo na duvida? Fuja!. Correu até a porta da sala. Sua mão escorregava na maçaneta, rápido, rápido, rápido!. Sentiu um vulto crescer em suas costas, e quando abriu a porta da sala já era tarde demais. Agora Havia apenas escuridão.
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