Memórias do Cárcere Obstétrico - MCO
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Obra completa
"Em menos de uma hora desfiz duas certezas que tive por toda a vida:
a primeira, de que nada sobrenatural existe e
a segunda, de que se um dia visse algo “anormal”
sairia correndo para o lado oposto do fenômeno. "
Somente quem vive a experiência de um parto sabe quanto é áspera, tátil, e emocionante a hora do nascimento. O livro é um conto que fala sobre a experiência vivida por um interno de medicina em uma noite sobrenatural. Recheada de enigmas e surpresas Memórias do Cárcere Obstétrico é mais que um divertimento certo...é simplesmente uma leitura empolgante.
Memórias do Cárcere Obstétrico
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Memórias do Cárcere Obstétrico
Por Helton Ojuara
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Tudo na vida é história
e não existe uma história ruim,
qualquer história é emocionante,
desde que bem contada.
São fatos:
- A Maternidade Climério de Oliveira foi criada em outubro de 1910
- Foi a primeira maternidade -escola do Brasil
- Os internos de medicina passam dois meses e meio entre suas paredes
- Espíritos vagam a noite enquanto alguns dormem, quer você acredite, quer não.
Dados técnicos *
- A Cardiotocografia estuda a biofísica do feto, permitindo avaliar o bem-estar fetal. O exame é realizado por um aparelho chamado cardiotocógrafo, e nele são registrados os batimentos cardíacos do feto, sua movimentação e a contração uterina. O resultado do exame é semelhante a um traçado de eletrocardiograma, e com ele, o médico pode avaliar se o feto tem insuficiência na oxigenação cerebral por motivos placentários, posicionais ou compressões do cordão umbilical, como por exemplo a circular cervical.
- Doença Hipertensiva Específica da Gestação ( D. H. E. G. )
É uma doença caracterizada pelo aumento da pressão arterial durante a gravidez e urina com proteínas. Causando riscos para a mãe e para o concepto.
- Segundo o Ministério da Saúde, caracteriza-se gestação prolongada, também conhecida como pós-datismo, é aquela cuja idade encontra-se entre 40 e 42 semanas. Gravidez pós-termo é aquela que ultrapassa 42 semanas.
- A curetagem uterina é um procedimento médico realizado em unidade hospitalar, sob anestesia geral ou locorregional, que objetiva retirar material placentário ou endometrial da cavidade uterina por um instrumento denominado cureta. Tem como função principal limpar os restos do aborto
- O Ambu é uma bomba manual, normalmente acoplada a uma máscara, cujo uso mais comum é na ventilação em momentos de emergência, ou quando a pessoa encontra-se desacordada.
* para aqueles que não são da área de saúde
Memórias do Cárcere Obstétrico - Prólogo
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Prólogo
- Vai minha filha empurre! Empurre!
E os gritos de uma mulher ecoam pela noite.
Salvador,Nazaré, Maternidade Climério de Oliveira,
Sexta feira, noite.
Sala de parto.
Salvador pode ser vista de várias formas, mas a melhor delas é à noite, quando a lua brilha alto. Iluminando a Bahia de todos os santos, as ruas escuras e o leito das mulheres que amam ou que estão a parir.
A Maternidade Climério de Oliveira é um prédio antigo, situado em um bairro antigo. Á noite seu estacionamento quase sem carros, silencioso e aparentemente desértico, esconde o desespero e os gritos das mulheres que se encontram dentro de suas paredes.
- Pare de gritar e empurre esse bebê! O plantonista diz alto enquanto analisa se a criança terá passagem pelo canal vaginal da mulher.
Ela grita, o ar foge de seus pulmões quase sem querer. Ele sabe que para o bebê nascer ela terá que prender a respiração e fazer força. Mas saber e executar aquilo que se sabe são duas coisas diferentes. A dor do parto é lancinante. Ela sente-se como se estivesse sendo rasgada por dentro e somente ao longe ouve a voz do plantonista.
- Mulher, se você não fizer força essa criança não vai nascer. Escute, no próximo push quero que você empurre. Faça força de fazer cocô, certo? Vamos, ele não pode mais ficar onde está, vamos, foooorça!
A mulher sente a dor vim, e com a dor a contração vigorosa do útero que empurra o bebê em direção ao canal do parto. Ela segura firme nas barras laterais da maca e tenta buscar forças de onde não existe mais. Eu apenas observo tudo. Eu, todo paramentado para o parto: gorro, máscara, capa. Com a compressa na mão tentando proteger o períneo da mulher. Ela é gorda, forte, com pernas enormes, seu períneo cortaria o oceano atlântico de tão grande. Na posição de litotomia de fleury, deitada com as pernas para cima e sendo multigesta este parto não deveria está tão difícil.
De repente algo sai pela vagina da mulher, um liquido escuro, em grumos escuros. Mecônio? Cristo. O plantonista arregala os olhos. Sofrimento fetal grave. Muito grave. Agir é mandatório.
- Mulher, por Deus, você vai colocar esse menino para fora agora.
O plantonista coloca a mão sobre o abdômen da mulher e no momento que ela faz força ele ajuda com um empurrão vigoroso. A criança coroa fortemente pela vagina da mulher e é expulso quase como um vômito em jato bem em cima dos meus braços.
- Pequei! Disse no susto.
Senti o Recém-nascido (RN) diferente do habitual. Totalmente arroxeada, cianótica. A pálpebra esquerda lacerada. O menino estava rígido como um cadáver. O plantonista olha, segura na mão do bebê.
– rigor mortis, está morto. Nada a se fazer. Preenche o atestado de óbito pra mim. Ele Tira a luva, a máscara e sai da sala de parto.
Eu com a criança no colo. A mãe chorava copiosamente. Penso no que dizer. Mas não sei, nessas horas nunca sei o que dizer... Então sinto algo mexer em meus braços. O menino segurou firme a minha mão. Chamo o plantonista. Inacreditável! Olho o bebê que estranhamento parece rir. Dentes, recém-nascido com dentes? Eu fico paralisado sem acreditar. Ele abre os olhos pequenos, escuros e morde meu braço. A dor e o susto me fazem solta-lo ao chão. Apenas tenho tempo de ver os olhos de tristeza da mãe, a boca do menino que sorri no chão, ainda com meu sangue entre seus dentes e algumas marcas estranha em meu braço, antes de abri os olhos e acordar em meio a escuridão.
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 1
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Capítulo 1
O ar condicionado zumbindo diabolicamente. Parecia um monstro grunhindo de raiva. Acordei meio embriagado pelo sono. Tudo meio lento em meu raciocínio. Um frio intenso estremece a minha espinha. Em alguns instantes a realidade me absorve como uma onda de lucidez e então, percebo que estou na Climério, no quarto dos internos. Um breu total.
- Ar condicionado desgraçado! Penso, pois falar após acordar de um pesadelo é um esforço sobre-humano.
Tateio na cama o meu celular. Que horas seriam? A luz do visor do meu celular cega-me temporariamente. Três horas da madrugada. Três horas. Hora do meu turno. Na Climério, assim como na maioria dos hospitais do Brasil, após a zero hora, os médicos, os residentes e a ralé: internos e Cia, dividem o horário de quem vai acordar para evoluir, atender os pacientes. E eu, miseravelmente, fiquei com as três horas. Não que eu tenha nada com as três horas, apesar de ser um horário cabalístico. Horário em que Emilly Rose acordava para brigar com o demônio. De qualquer sorte, três horas não é o melhor horário do mundo. Entrar em sono REM? só em sonhos. Paciência. Tentei visualizar o interno que estava com o horário anterior, deitado bem na frete do meu beliche, lá estava ele: já roncando. Respirei forte e sentei sobre a cama. Já era o meu oitavo CO e ainda não tinha acostumado-me com o quarto dos internos. Apertado, dividido no meio por meia parede, um armário que nunca usávamos e uma janela grande de vidro fosco, que estava sempre fechada. Mesmo de dia o quarto era escuro. Os quatro beliches, dois em cada parte, dava um tom meio que de cárcere ao ambiente. Daí a alcunha CO – cárcere obstétrico.
Levante, levante. Meu corpo teimava em aceitar passivamente as leis da física, e permanecia na inércia. Mas o interno é um verme na hierarquia dos predadores da maternidade. E levantar é preciso. Levantei, calcei o sapato, coloquei os óculos e o relógio, procurei a caneta sob a cama. Nada. Paciência, oh palavrinha cretina. Abrir a porta lentamente sem fazer barulho e saí. A porta do quarto dos internos dava acesso direito a um corredor que acabava no pré-parto. O corredor estava escuro, exceto pelo pouco de luz do pré-parto que teimosamente atravessava a parte de vidro da porta metálica do corredor. Apertei o interruptor de luz. Não funcionou. A lâmpada deveria estar queimada. Andei em direção ao pré-parto que estranhamente estava silencioso. Geralmente o pré-parto parecia mas uma masmorra, daquelas com vários prisioneiros sendo torturados, tamanha era a lamuria das parturientes que urravam de dor sobre os leitos, esperando a hora do parto. Esfreguei os olhos, pré-parto quase vazio. Apenas três pacientes. Olhei o quadro branco, que ficava próxima a porta da admissão. Nele se encontrava as anotações resumidas dos casos das gestantes. A paciente do leito um, nome abreviado, C.H., 33 anos, três gravidez, um parto e um aborto (G3P1A1), paciente com Doença Hipertensiva Específica da Gravidez – DHEG grave, sulfatando. A do leito três, VGS, 27 anos, G1P0A0 uma indução, devido a pós-datismo. A do leito seis, MCL, 22 anos, uma curetagem....
- mas calmo impossível.
Umas das técnicas de enfermagem cochilava sobre a cadeira, fui até a admissão, abri a porta da emergência... vazio também. O silêncio quase sobrenatural. Voltei ao pré- parto, um pouco de água não faz mal a ninguém. Deveria ter ficado dormindo. Maldito ar condicionado, se não fosse por ele talvez esquecesse a minha ética e quem sabe nem levantasse e sem dor na consciência. Peguei um copo descartável na prateleira de utilidades próximo a técnica. Dorme, minha filha, dorme... A baba quase escorrendo pelo conto da boca. Fui até a sala da televisão. Esta ficava em frente as salas de parto. Nesta hora da madrugada estava tão escura quanto o restante da Climério, o único detalhe talvez fosse dois ou três técnicos deitados sobre os sofás. Ninguém é de ferro. O bebedouro ficava logo no canto da parede. A água quase gelada já caia no copo quando um som familiar se fez ouvir:
Tocô – tocô -tocô- tocô
-Cardiotoco? Mas quem?
Andei rápido até a sala de pré-parto. Tudo calmo. As pacientes e a técnica estavam dormindo. O cardiotocógrafo - Desligado. Estranho... não tive tempo de raciocinar sobre o que poderia ter acontecido. Um choro de bebê me fez voltar a atenção para os leitos. Minha reação foi de verificar como estavam as parturientes. Corri até o leito um, aparentemente dormindo. A do leito três , se encontrava do mesmo jeito. O choro se fez ouvir mais alto. Parecia vir do quarto dos internos. Fui até a porta do corredor e a abri len-ta-men-te. A pouca luz que adentrava o corredor desenhava a silhueta de um bebê , em pé, escrevendo algo próximo a porta, a beira do quarto. Ele virou-se para mim. Tinha algo na mão, uma caneta ?! Minha caneta!. Seu rosto me pareceu familiar... a pálpebra do olho esquerdo lacerado.... o bebê abriu a boca, chorou assombrosamente e entrou correndo no quarto. Maldição!...
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 2
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Capítulo 2
Em menos de uma hora desfiz duas certezas que tive por toda a vida: a primeira, de que nada sobrenatural existe e a segunda, de que se um dia visse algo “anormal” sairia correndo para o lado oposto do fenômeno. Agora estava eu a entrar pelo quarto escuro dos internos a busca de um bebê supostamente morto. Morto. Melhor, ele supostamente nem nasceu, afinal, aquele bebê era o mesmo do meu sonho. Possível? Não, é impossível. Mas então tinha que provar para mim mesmo que foi uma ilusão. Ou não foi?
Há instantes atravessei correndo o corredor entrei no quarto. Se o capeta do bebê estivesse ali eu acharia. O quarto estava escuro, entrei pela porta que dava acesso a parte do quarto que tinha o armário e a janela de vidro. Um nesga de luz entrava pelo vidro da janela. Iluminava a cama que chamávamos de fototerapia, uma interna dormia calmamente... Lembrei que o meu celular era daqueles que tinha uma lanterna. Bem a calhar neste momento. A luz do celular iluminava o ambiente razoavelmente. Um balde de roupa, alguns internos dormindo e salivando os travesseiros. Nenhum evento estranho. Ajoelhei, tantos COs e nunca tinha olhado debaixo do beliche. Olhei, nada de espetacular, uma moeda , dois sapatos, minha caneta?! Ou realmente deixei cair no chão ao levantar da cama ou o desgraçado não é uma ilusão e a deixou aqui. Era uma caneta Bic, duas cores: azul e vermelha. A parte vermelha estava Travada. Nunca uso a vermelha. Corri até a porta onde tinha visto o bebê escrever algo na parede, me abaxei no corredor, procurei algo escrito mais ou menos na a altura dele, e lá estava , de vermelho . Não podia dizer que eram palavras, mas com certeza eram desenhos... Símbolos, eram símbolos. Na verdade, eu já os tinha visto em outro lugar...no meu braço, no pesadelo. E o que significavam? Somente Deus sabia.
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 3
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Capítulo 3
Um doze romano, algo que parece um estetoscópio, uma cruz dentro de um círculo. E o que isso quer dizer? Talvez não queira dizer nada. As paredes da Climério, principalmente do quarto dos internos são bastantes rabiscadas de canetas, lápis, pincel de quadro branco. Uma memória dos internos que já passaram pela maternidade. Alguns depoimentos são idiotas, outros interessantes. Houve épocas que as escritas nas paredes eram uma distração para os que estavam presos de plantão , mas com o tempo havia tantas e tantas coisas escritas, que o quarto se transformou em um quadro de arte moderna – poluição visual pura. Mas havia no quartos dois depoimentos que chamavam-me a atenção. Um ficava em baixo do lastro de cima de uma das beliches e dizia: “a morte é o descanso da vida para aqueles que não sabem viver”. O outro falava, nada poético, nada profundo, nada muito inteligente, mas com um significado que só um interno saberia decifrar: “gente, gente , gente englobei a residente”. Eu avisei, nada muito profundo ou poético, mas como diria um amigo meu, como a mente humana é complexa, há coisas que não é possível decifrar , apenas vivenciá-la. Eu mesmo já tinha sido “englobado” pela Residente uma, duas vezes. Miserável. Gestante pronta para pari, eu já todo paramentado, os dedos coçando, só esperando o recém-nascido, quando chega a Residente com um sorriso amarelo na cara. E faz todo o parto. Completamente. Lá vai mais um interno saindo da sala de parto sem nem sujar as luvas. Paciência. Oh palavrinha sem jeito. Pois bem, o mais provável é que eu já tenha visto estás marcas antes, mesmo sem prestar atenção muito nelas. E com diria Freud, o meu inconsciente apenas sublimou a sua existência no pesadelo... Foi isso. Com certeza. Não há outra explicação...
Tocô- toco - tocõ
O Maldito som da cardiotoco novamente. Fui o mais rápido que pude até o pré-parto. O som continuava. Olhei o cardiotocógrafo, desligado, tudo calmo, nada fora do lugar. Ou quase nada. A técnica não estava mais dormindo na cadeira. Tinha sumido. Ou apenas tinha indo no banheiro. Nestas horas a nossa mente faz conjecturas absurdas. É preciso concentrar. O som parecia vim da sala da televisão, caminhei até lá, tudo como antes, os técnicos espalhados pelo sofá, a sala escura. Não totalmente. Na sala de televisão havia uma porta que dava acesso a sala do computador. Uma sala pequena, confortável, com sofá, uma mesa, cadeiras e, por assim dizer, um computador. A luz escapava pelas frestas da porta. Andei em sua direção e a cada passo o som da carditotoco ficava mais alto. Toco-toco-toCO-TOCO. Nunca, sob nenhuma hipótese o cardiotocógrafo estaria na sala de computador, seja o que fosse que estivesse fazendo o som , certamente não estaria dentro daquilo que considero como “ tecnicamente normal”. Segurei firme a maçaneta da porta, o medo me fez parar, poderia simplesmente desistir agora, não abriria a porta, voltaria para minha cama, acordaria amanhã e evoluiria os meus pacientes na enfermaria. Perfeito. Seria um CO normal, como outro qualquer. Hesitei por alguns instantes. Dane-se. Abri a porta.
...A sala estava parcialmente iluminada, a luz vinha do computador que estava ligado. Na tela do computador apareceu um traçado característico. O traçado do cardiotocógrafo, com uma linha de base em oitenta bpm. O normal nunca era menos que cento e vinte. Depois os símbolos apareceram na tela por alguns segundos. Por fim, um rosto de um bebê com a pálpebra esquerda lacerada. A tela ficou toda branca e o computador desligou. O som finalmente desapareceu.
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 4
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Capítulo 4
Algumas coisas são lendas na Climério, uma delas é realizar uma cesárea após as duas da manhã, a outra é o sinal da internet sem fio do computador funcionar. Se tem algo que da mais raiva do que ver uma assombração no seu horário da noite, é não conseguir ter acesso a internet quando se precisa. O sinal era péssimo. Tentei de todas as formas, mas a praga desgraçadamente se negava funcionar. Sentei na cadeira, desolado. Quando o computador desligou, eu fiquei parado na porta. Não sabia o que fazer, talvez devesse acordar os técnicos de enfermagem e dizer sobre o ocorrido, mas depois desistir da idéia. Ora, quem ia acreditar que eu tinha visto um bebê morto pentelhando pelo CO.
“ pessoal , estou acordando vocês para informar que tem um nati-morto correndo pelo pré-parto , acabando com o meu horário do plantão”
No máximo o que eu ganharia era uma receita de um anti-psicótico e uma folga por estresse. Paciência, terceira vez que digo isso em tão pouco tempo. Tinha adentrado a sala de logo que o computador desligou. Procurei o interruptor de luz, pelo menos esta funcionava. Aproximei-me do CPU. Mas por que raios o bebê apareceu no monitor? Se não fosse cético e acreditasse em mensagens do além, acabaria reconhecendo que o danado estava tentando me dizer algo. Primeiro foi o sonho, depois os símbolos na parede e agora o computador.. . Quase por instinto sentei na cadeira e apertei o botão de Power. Duas tentativas e ele ligou. Alguns segundos depois estava tudo funcionando. Então uma idéia me veio a cabeça. Poderia ver se achava algo na net sobre os símbolos. Dez minutos depois deste primeiro pensamento, ainda estava tentado ter acesso à internet. Na Climério assim como em toda UFBA o sinal da internet era sem fio. Na sala do computador esse sinal teimava misteriosamente em desaparecer. Era uma assombração dos infernos, constante e irritante. Agora estava eu aqui, sentado e frustrado, lendo um recado colado ao lado do CPU, - por favor manter o computador nesta posição , devido ao sinal da internet
- Que posição cara pálida, de litotomia?. Um sentimento de raiva foi tomando-me. Porcaria! Dei um soco no CPU, que balançou e escorou-se na parede. E não é que o desgraçado do sinal apareceu. Está era a posição.
Lets go, baby! Agora minha investigação vai começar. Não sou nenhum Robert Lagdon, mas quem tem o Google jê é meio Sherlock Holmes.
Os meus dedos pararam sobre o teclado, o que escrever? Os desenhos na parede como já disse antes não eram bem palavras ...parei e fiquei olhando para tela do computador... se eu fosse um enigma feito por um fantasma onde eu me esconderia?
Elementar meu caro Watson! Saber com funciona o Google é saber quais são as chances de sucesso em minha busca. O Google é basicamente um banco de dados inteligente. Os dados são agrupados em tabelas e ordenados de acordo com palavras-chave, como autor ou título. O que o Google faz é acumular cada página da Web num banco de dados. O endereço da página, o nome, e as palavras mais freqüentes e suas respectivas freqüências são todas incluídas na ficha daquela página. O mais importante, todas as outras páginas para as quais a página linca também são guardadas. Quando você digita a sua busca na caixinha do Google, o software traz todas as fichas cujo conteúdo casam com sua busca. Mas o que pouca gente sabe, é que qualquer um pode ficar na primeira pagina do Google, basta cadastrar o site em sites de busca específicos, como o Rec6. Em resumo saber de tudo isto me fazia ter uma certeza : achar o que eu quero não será uma tarefa fácil.
Os dedos ainda parados sobre o teclado. Ora, o que escrever? Os desenhos não eram bem palavras. Humm... Símbolos! Pois bem, digito veloz mente:
-Símbolo.
0,21 segundos: aproximadamente 29.400.000 para símbolo
- Perfeito. Balancei a cabeça negativamente.
Milhões de coisas, nenhuma do meu interesse “símbolo - wikipédia, a enciclopédia livre”, “o conceito de símbolo, símbolo perdido, o símbolo da medicina.... o símbolo da medicina: tradição e heresia”. Vamos tentar filtrar, colocar em imagens.
- 214.000 resultados aproximadamente
.
Havia símbolos, japoneses, de marcas, humorísticos, gregos... egípcios. Já estava desistindo quando por volta da décima sexta página uma imagem me chamou a atenção. Símbolos egípcios. O círculo com a cruz vazia parte de um conjunto de símbolos astrológicos que representavam os planetas, o meu símbolo em questão representava a terra. E daí? Descoberta sem frutos. Vamos tentar o Numero doze romano – XII..
![](http://www.acienciasgalilei.com/astrofisica/imag/simbolos.gif)
A pesquisa do doze foi mais difícil que o do círculo. Dez minutos depois, página trinta de pesquisa e nada. Então uma imagem com uma carta em que um dos cantos dela aparecia o número III, me fez ter uma dedução lógica: e se o numero doze for a ordem de uma carta.
- Carta XII
Aproximadamente 227.000 para carta XII (0,06 segundos)
Muitas imagens. Porém já na segunda pagina uma carta em especial me chamou a atenção . Abrir o link, dei sorte.
O doze significava a décima carta do tarôt, onde no ápice havia um círculo com a cruz, embaixo havia a frase the hanged man – o enforcado. Fui lendo no site sobre o assunto, e a Cada linha algumas coisas ficavam claras, outras não. A carta do Enforcado continha um dos simbolismos mais complexos do Tarôt. Ela mostrava a imagem de um homem suspenso por um pé, amarrado em uma viga de madeira, a qual está apoiada entre duas árvores ou pilares, cada uma com seis ramos cortados, onde significa o mundo material .
![](http://www.girafamania.com.br/historia_arte/marselha12.jpg)
![](http://www.girafamania.com.br/historia_arte/eg12.jpg)
O Enforcado representava a sujeição e o sacrifício aos quais são submetidos todos aqueles que perseguem um ideal. Também está relacionado com o tema da levitação, do vôo durante os sonhos e do isolamento dos místicos. As pernas cruzadas denotavam a predominância do mundo material sobre o espiritual, o pé não amarrado indica que a situação não é incorrigível.
Não sei ainda porque o nati-morto queria tanto que eu soubesse sobre estes dois símbolos, mas já era alguma coisa , só faltava agora o desenho que parecia um estetoscópio. Já este foi mais fácil do que eu imaginava. Voltei ao site onde tinha encontrado os símbolos astrológicos, Neste site havia vários links com diversos símbolos. Gregos, troianos, egípcios, símbolo novos e antigos, cristãos e satânicos. Ele tinha que estar aqui. Fui baixando o rotor do mouse, uma grupo de símbolos me chamou á atenção- símbolos coptos
“A Linguagem Copta, uma das últimas linguagens utilizadas no Egito Antigo, na qual foi escrita e primeira versao do Novo Testamento. O copta é uma língua que floresceu por volta do século III no Egito Antigo, da família lingüística camito-semítica ou afro-asiática. O alfabeto copta é uma versão modificada do alfabeto grego, com algumas letras demóticasutilizadas para representar alguns sons não existentes no alfabeto grego. Como língua cotidiana teve seu apogeu entre o século III e o século VI. Ainda hoje permanece como língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja Católica Copta.”
![](http://www.mariomarcia.com/FotosViagens/Africa/Egipto/InfoEgypt/Hieroglifos/MMTabelaAlfabeto.jpg)
O símbolo do estetoscópio significava uma letra egípcia antiga CH...
-Santo Deus.
Em frações de segundo uma luz se abriu em minha mente. Só podia ser isso, não havia outra explicação. Saí correndo em direção ao pré-parto. Olhei o quadro branco preso a parede. E confirmei a minha suspeita. O CH fazia referencia a mulher no pré-parto, a com DHEG grave. O pesadelo não era somente um pesadelo, era uma premunição.
“Ela mostrava a imagem de um homem suspenso por um pé, amarrado em uma viga de madeira, a qual esta apoiada entre duas árvores ou pilares”
O homem poderia ser o bebê, a corda amarrada talvez fizesse referencia ao cordão umbilical, as duas arvores ou pilares - a vida e a morte, mãe e filho.
Lá estava ela, deitada. Somente agora percebo que ela não estava dormindo, estava obnubilada, gemendo baixo de dor. As frases do site ecoavam em minha cabeça
A carta do Enforcado continha um dos simbolismos mais complexos do Tarôt
O cardiotocógrafo estava perto do leito dele, arrastei ele até próximo a ela,
Neste sentido, os doze ramos cortados expressavam a extinção da vida.
Não queria traçar uma cardiotocografia, mas serviria par ouvir o batimento do coração do feto.
As pernas cruzadas denotavam a predominância do mundo material sobre o espiritual, o pé não amarrado indica que a situação não é incorrigível.
Espero que o feto ainda esteja vivo
A mulher estava coberta até a altura dos busto com um cobertor branco.
- mãe? A chamei carinhosamente como costumava chamar todas as gestantes , ou puerperas .
- mãe, você esta me ouvindo? vamos escutar o batimento do nenê? Vamos, tire esta coberta...
Fui retirando a coberta. A mulher era gorda, o rosto redondo. A medida que a olhava uma sensação estranha foi tomando-me, até que sua barriga enorme não deixou esconder o que estava por debaixo do cobertor derramado entre suas pernas- Mecônio, grosso e volumoso mecônio. Sofrimento fetal grave,.... todo o pesadelo se passou na minha mente. Afastei as pernas da mulher, o cabelo da criança já bojava no canal vaginal. O ar faltou-me por instantes. E as únicas coisas que conseguir dizer foram:
- Mecônio..., plantonista... Sala de parto... Sala de paaaarto!
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 5
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Capítulo 5
Poucas coisas são piores do que fazer um parto na madrugada. Uma delas é fazer um parto de uma paciente com DHEG e com mecônio. Não apenas pelo risco de convulsão, uma convulsão intra parto, poderia trazer conseqüências danos para mãe e para o feto. Quanto ao mecônio, representava sofrimento fetal grave. O mecônio nada mais é do que o própria fezes do feto. É uma reação primitiva ao sofrimento, centopéia, lagartixas, ratos. Qualquer animal vertebrado ou invertebrado em situações de extremo sofrimento liberam fezes. Não é diferente para o feto.
Tudo aconteceu muito rápido. Mal vi que a presença do mecônio , o bebê bojava pelo canal de parto. Ainda, pedi a mulher para não fazer força, para retardar um pouco o parto. Mas ela não estava fazendo.
- Sala de parto. Gritei novamente. Algumas técnicas apareceram
- Chame o plantonista, a residente. Todo mundo!
Uma técnica de enfermagem saiu correndo, em direção ao quarto.
- droga, vai nascer aqui. O bebê coroava, não vai dar tempo. Calcei as luvas. Tão rápido quanto pude.
A mulher gemeu mais alto. Aparentemente tinha recobrado parcialmente a consciência. O gemido se transformou em um grito e o bebê teimava em aparecer e desaparecer pelo canal de parto.
- não vai ter passagem. Pelo amor de Deus , chamem o plantonista!
Não tinha muito o que fazer, apenas proteger o períneo , com a mão para que não houvesse uma laceração dos músculos. O mecônio escorrendo a cada contração uterina.
- Vamos mãe faça força. Na próxima contração, força, força. Ele não pode mais ficar onde está.
Os gritos da mulher estremeceu toda a Climério e a cabeça do bebê bojou completamente pela vagina. Pronto. Pensei. Agora é só retirar os ombros. Mas o bebê não saía. O ombro estava preso. Puxei fracamente, o medo de lesar o pescoço da criança era tão grande quanto o de deixar ele naquela situação. Até que, como um super herói que surge em momentos de perigo, o plantonista apareceu . As luvas já calcadas.
-Saia. Ele disse.- Vai minha filha empurre! Empurre!
O plantonista segurou o bebê colocando os dedos entre a cabeça e o pescoço. E puxou. Vigorosamente. O fato da mulher está parindo sobre a cama do pré-parto dificultava a destorce de ombro. O plantonista puxou novamente, mais forte ainda. Imaginei, vai decepar a cabeça . Mas como uma mágica e com muita habilidade ele retirou o bebê. Parado. Sem uma única respiração. Tudo tão rápido, que mal deu para ouvir o plantonista dizendo:
- Chamem o neonatologista. A criança tá em parada,- temos que ressuscita –lo. E saiu correndo com o RN na mão, em direção ao ressuscitador.
Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 6
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Capítulo6
Prover calor, posicionar a cabeça, aspirar secar, estimular , reposicionar e reavaliar. Gostaria que essa fosse a única etapa do algoritmo de reanimação do RN, mas infelizmente não era. O bebe nasceu , sem respirar, mergulhado em mecônio. O plantonista já tinha checado os batimentos fetais, menor que sessenta, bem menor. Ele já tinha oferecido oxigênio inalatório, mas o RN continuava cianótico , sem mudança. O plantonista aspirava pela boca do nenê o máximo de mecônio que podia. A impressão que dava que ele tinha engolido todo o mecônio do mundo.
-Pegue o ambu. Monte. Ele disse isto, enquanto uma das mãos já procurava algo na bancada de medicamentos.
Montar o ambu? Não lembrava muito como fazia isto. Apenas tinha visto algo nas aulas de neanatologia. Mas o cérebro humano é uma maquina operante, e eu, sabe Deus como, montei .e lá estávamos nós oferecendo ventilação positiva para o bebê. Trinta segundos depois ele ainda tinha freqüência menor que sessenta. A esta altura dos acontecimentos, a sala já estava cheia de gente, enfermeiros, técnicos de enfermagem, os internos. Nada do neonatologista.
- Onde esta o neonatologista?- berrou o plantonista.
A preocupação dele era que o bebê necessitava entubar. E convenhamos sem treinamento não há eficiência. Teríamos que nos virar com o ambu mesmo. O plantonista começou a fazer a reanimação cardíaca do RN, ao contrário dos adultos, no RN freqüência cardíaca menor que 60 e persistência da cianose, a massagem era mandatória. Mais trinta segundos. O tempo agora, era o inimigo. Nem eu sei se respirava mais. Tudo se processava ora ultra rápido, ora super lento.
- Adrenalina, me dêem adrenalina. Disse o plantonista olhando para as técnicas de enfermagem.
-Doutor, olhe, olhe... Disse eu apontando para o bebê, que começava a chorar, ainda engasgado, mas chorando.
A cianose indo embora. Houve uma euforia e uma comoção geral na sala. Alguns gritavam emocionados isso, isso!, Algumas internas choravam. Eu apenas mantinha a oxigenação do bebê. Minha vista nublada por lagrimas. O plantonista soltou um sorriso preso.
- Conseguimos.
Mais alguns instantes, o neonatologista chegou e a rotina do parto pode continuar. Eu olhava para o bebê, as mãos enrugadas, o choro ainda um pouco abafado. A pálpebra do olho esquerdo normal. Sem lacerações. Era um menino. A mãe olhava, com um olhar de felicidade. Estava exausta mais feliz. Muitas coisas não foram normais esta noite. E que bom que não foram.
Memórias do Cárcere Obstétrico - Epílogo
Epílogo
O sol já tentava preguiçosamente aparecer no horizonte. Alguns raios de luz deixavam o céu meio cinza. Assim como o banco em frente ao estacionamento, próximo à admissão. Fiquei sentado lá esperando o dia acordar, calmamente, olhando o monumento de bronze que mostrava a face do Dr. Climério de Oliveira. Pensei no boato que diz que a Maternidade era assombrada pelo espírito dele. O velhinho acordava e perseguia os internos pela maternidade. De qualquer sorte, se ele viesse assombrar os corredores da maternidade, hoje, com certeza eu o agradeceria. Afinal, graças a maternidade que ele ajudou a erguer, eu construir lembranças que jamais esqueceria.
Já estava quase levantando-me quando a residente apareceu na porta. O rosto inchado de sono.
- O que foi que perdi? Ouvi uns gritos, algo parecido. Estava com tanto sono... Disse ela com a voz ainda rouca.
- Um parto. Um daqueles.
- Pooooxa. Porque ninguém me acordou. Gostaria de ter feito.
- Que pena. Levantei do banco. Peguei no ombro dela. Olhei para ela com um olhar de consolação e com um sorriso querendo escapar pelo canto da boca
– foi o melhor que já fiz.
“Gente, gente, gente englobei a residente”
Adentrei pelo pré-parto e fui até a admissão. A emergência já começava a encher de gestantes. Lá, uma grávida com uma face de dor e uma ficha de atendimento na mão, pronta para ser atendida. Abri a porta da emergência. A Climério não para. Nem nós. Nunca.
- Próxima.
Aos Internos de Medicina da UFBA
- Minha humilde homenagem aos que
de verdade
fazem a Climério ser o que é.