MCO - Cárcere Obstétrico- Helton Ojuara

Memórias do Cárcere Obstétrico - MCO

Obra completa
"Em menos de uma hora desfiz duas certezas que   tive por toda  a vida:   
a primeira,  de que  nada sobrenatural existe e 
a segunda,  de que se um dia visse algo  “anormal”    
sairia correndo para o lado oposto do fenômeno. "

Somente quem vive  a experiência de um parto sabe quanto é áspera, tátil, e emocionante   a hora do nascimento. O livro é  um conto que fala sobre  a experiência vivida por um    interno de medicina em uma noite  sobrenatural. Recheada de enigmas  e surpresas Memórias do Cárcere Obstétrico é mais que um divertimento certo...é simplesmente uma leitura empolgante.
Memórias do Cárcere Obstétrico
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Memórias do Cárcere Obstétrico

Por Helton Ojuara

 

Tudo na vida é história
e não existe uma  história ruim,
qualquer história  é emocionante,
desde que bem contada.



São fatos:

 - A Maternidade Climério de Oliveira  foi criada em outubro de 1910

 - Foi a primeira maternidade -escola do Brasil

 - Os internos de medicina passam  dois meses e meio entre suas paredes

 - Espíritos vagam a noite enquanto alguns dormem, quer você acredite, quer não.


Dados técnicos *
 * para aqueles que  não são  da área de saúde

 - A Cardiotocografia estuda a biofísica do feto, permitindo avaliar o bem-estar fetal. O exame é realizado por um aparelho chamado cardiotocógrafo, e nele são registrados os batimentos cardíacos do feto,  sua movimentação e a contração uterina. O resultado do exame é semelhante a um traçado de eletrocardiograma, e com ele, o médico pode avaliar se o feto tem insuficiência na oxigenação cerebral por motivos placentários, posicionais ou compressões do cordão umbilical, como por exemplo a circular cervical.

 - Doença Hipertensiva Específica da Gestação ( D. H. E. G. )
É uma doença caracterizada pelo aumento da pressão arterial durante a gravidez e  urina com proteínas. Causando riscos para a mãe e para o concepto.

 - Segundo o Ministério da Saúde, caracteriza-se gestação prolongada, também conhecida como pós-datismo,  é aquela cuja idade encontra-se entre 40 e 42 semanas. Gravidez pós-termo é aquela que ultrapassa 42 semanas.

A curetagem uterina é um procedimento médico realizado em unidade hospitalar, sob anestesia geral ou locorregional, que objetiva retirar material placentário ou endometrial da cavidade uterina por um instrumento denominado cureta. Tem como função principal limpar os restos do aborto

Ambu é uma bomba manual, normalmente acoplada a uma máscara, cujo uso mais comum é na ventilação em momentos de emergência, ou quando a pessoa encontra-se desacordada.
* para aqueles que  não são  da área de saúde


Memórias do Cárcere Obstétrico - Prólogo




Prólogo

 - Vai minha filha  empurre! Empurre!
E os gritos  de uma mulher ecoam pela noite.

Salvador,Nazaré, Maternidade Climério de Oliveira,
Sexta feira,  noite.
Sala de parto.

Salvador pode ser vista de várias formas, mas a melhor delas é à noite, quando a  lua brilha alto. Iluminando a Bahia de todos os santos,   as ruas escuras e o leito das mulheres que amam  ou que  estão a parir.
A Maternidade Climério de Oliveira é um prédio antigo, situado em um bairro antigo.  Á noite seu estacionamento  quase sem carros, silencioso e aparentemente desértico, esconde o desespero  e os gritos das mulheres que se encontram  dentro de suas paredes.

- Pare de gritar e empurre esse bebê! O plantonista diz alto enquanto  analisa se a criança terá passagem pelo canal vaginal da mulher.

Ela grita, o ar foge de seus pulmões quase sem querer. Ele sabe que para o bebê nascer ela terá que prender a respiração e fazer força. Mas saber e executar aquilo que se sabe são duas coisas diferentes.  A dor  do parto é lancinante.  Ela sente-se como se estivesse sendo   rasgada por dentro e   somente ao  longe  ouve a voz do plantonista.

- Mulher, se você não fizer força essa criança não vai nascer.   Escute, no próximo push quero que você empurre. Faça força de fazer cocô, certo? Vamos,  ele não pode mais ficar onde está, vamos, foooorça!

 A mulher sente a dor vim, e com  a dor  a contração vigorosa do útero que empurra o bebê  em direção ao canal do parto.  Ela segura firme nas barras laterais da maca  e  tenta buscar forças de onde não existe mais.  Eu apenas observo tudo. Eu, todo paramentado para o parto: gorro, máscara, capa.  Com  a compressa na mão tentando proteger o períneo da mulher. Ela é gorda, forte, com pernas  enormes, seu períneo cortaria o oceano atlântico de tão grande. Na posição de litotomia de fleurydeitada com as pernas para cima   e  sendo multigesta  este parto não deveria está tão difícil.
            De repente algo sai pela vagina da mulher, um liquido escuro,  em grumos escuros. Mecônio?  Cristo. O plantonista   arregala os olhos. Sofrimento fetal grave. Muito grave.  Agir é mandatório.

- Mulher, por Deus, você vai colocar esse menino para fora agora.

plantonista  coloca a mão sobre o abdômen da mulher e no momento que ela faz força ele  ajuda com um empurrão vigoroso. A criança coroa fortemente pela vagina da mulher e é expulso quase como um vômito em jato bem em cima  dos meus braços.

- Pequei! Disse  no  susto. 

 Senti o Recém-nascido (RN) diferente do habitual.  Totalmente  arroxeada, cianótica.   A pálpebra esquerda  lacerada.  O menino estava rígido  como um cadáver. O plantonista olha, segura na mão do bebê.

– rigor mortis, está morto.  Nada a se fazer.  Preenche o atestado de óbito pra mim.  Ele Tira a luva, a máscara e sai da sala de parto.

Eu com a criança  no colo.  A mãe chorava copiosamente. Penso no que dizer. Mas não sei, nessas horas nunca sei o que dizer... Então sinto algo mexer em meus braços. O menino  segurou firme a minha mão.  Chamo o plantonista. Inacreditável! Olho  o bebê que  estranhamento parece rir. Dentes, recém-nascido com dentes?  Eu fico paralisado  sem acreditar. Ele abre os olhos pequenos,  escuros e morde meu braço.  A dor   e o susto me fazem solta-lo ao chão.  Apenas tenho tempo de ver os olhos de tristeza   da mãe, a boca do menino que sorri  no chão, ainda com meu sangue entre seus dentes  e algumas  marcas estranha em meu braço,   antes de abri os olhos e acordar em meio a escuridão.

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 1



Capítulo 1

O ar condicionado zumbindo  diabolicamente. Parecia um monstro grunhindo de  raiva. Acordei meio embriagado pelo sono. Tudo meio lento em meu raciocínio. Um frio intenso estremece a minha espinha.  Em alguns instantes a realidade me absorve  como uma onda de  lucidez e  então,  percebo que estou na Climério, no quarto dos internos.   Um breu total.

-  Ar condicionado desgraçado! Penso,  pois falar após acordar de um pesadelo é um esforço sobre-humano.  

Tateio na cama o meu celular. Que horas seriam?  A luz do visor do meu celular  cega-me temporariamente. Três horas  da madrugada.  Três horas. Hora do meu turno. Na Climério, assim como na maioria dos hospitais do Brasil, após  a  zero hora, os médicos, os residentes e a ralé:   internos  e Cia, dividem  o horário  de quem vai acordar para evoluir, atender  os pacientes.  E eu, miseravelmente,  fiquei com as três horas. Não que eu tenha nada com as três horas,  apesar de ser um horário cabalístico.  Horário em que Emilly Rose acordava  para brigar com o demônio.  De qualquer sorte, três horas não é  o melhor horário do mundo. Entrar em sono REM? só em sonhos.  Paciência. Tentei visualizar o interno  que estava com o horário anterior, deitado bem na frete do meu beliche,  lá estava ele:  já roncando. Respirei forte e sentei sobre a cama. Já era o meu oitavo CO e ainda não tinha acostumado-me com o quarto dos internos.  Apertado, dividido no meio por meia parede, um armário que nunca usávamos   e    uma   janela   grande  de vidro fosco, que estava sempre fechada. Mesmo   de   dia  o   quarto era    escuro. Os   quatro  beliches, dois em cada parte, dava um tom meio que de cárcere ao ambiente.  Daí  a alcunha  CO – cárcere obstétrico.
Levante, levante. Meu corpo teimava   em aceitar passivamente as leis da física,  e permanecia na inércia.  Mas  o interno é um verme na hierarquia  dos predadores da maternidade. E levantar é preciso. Levantei, calcei o sapato, coloquei os óculos e o relógio, procurei a caneta sob a cama. Nada. Paciência, oh palavrinha cretina. Abrir a porta lentamente sem fazer barulho  e  saí.   A porta do quarto dos internos dava acesso direito a um corredor que acabava no pré-parto.   O corredor estava  escuro,  exceto  pelo pouco  de luz do pré-parto  que  teimosamente atravessava a  parte de vidro da porta  metálica do  corredor.  Apertei o interruptor de luz.  Não funcionou. A   lâmpada deveria  estar queimada.  Andei em direção ao pré-parto que estranhamente estava silencioso. Geralmente o pré-parto parecia  mas uma masmorra, daquelas  com  vários prisioneiros  sendo torturados, tamanha era  a lamuria das parturientes que urravam de dor sobre os  leitos, esperando a hora do parto.   Esfreguei os olhos,    pré-parto quase vazio.   Apenas três pacientes. Olhei o quadro branco, que ficava  próxima a porta da admissão. Nele se encontrava as anotações resumidas dos casos das  gestantes. A paciente do leito um, nome abreviado,  C.H.,  33 anos,  três gravidez, um parto e um aborto (G3P1A1), paciente com  Doença Hipertensiva Específica da Gravidez – DHEG  grave, sulfatando. A do leito três, VGS, 27 anos, G1P0A0 uma indução, devido a pós-datismo.  A do leito seis, MCL, 22 anos,   uma curetagem....
- mas calmo impossível.
Umas das técnicas  de enfermagem cochilava sobre a cadeira,  fui até a  admissão,  abri a porta da emergência... vazio também. O silêncio  quase sobrenatural. Voltei ao pré- parto, um pouco de água não faz mal a ninguém. Deveria ter ficado dormindo. Maldito ar condicionado, se não fosse por ele talvez   esquecesse a minha ética  e  quem sabe nem levantasse e sem dor na consciência. Peguei um copo descartável  na prateleira de utilidades  próximo a técnica.  Dorme, minha filha, dorme... A baba quase escorrendo pelo conto da boca.  Fui até a sala da televisão.  Esta ficava em frente as salas de parto.  Nesta hora da madrugada estava tão escura quanto o restante da Climério, o único detalhe talvez fosse dois ou três   técnicos  deitados sobre os sofás. Ninguém é  de ferro.  O bebedouro ficava logo no canto da parede.  A água quase gelada já caia no copo quando um som familiar se fez ouvir:

Tocô – tocô  -tocô- tocô  

-Cardiotoco? Mas quem?

Andei rápido até a sala de pré-parto.  Tudo calmo. As pacientes e  a técnica estavam dormindo.  O cardiotocógrafo -  Desligado. Estranho... não tive tempo  de raciocinar sobre o que poderia  ter acontecido. Um choro de bebê me fez   voltar a atenção para os leitos. Minha reação  foi de verificar como estavam as parturientes.  Corri  até o leito  um,  aparentemente dormindo.  A do leito três , se encontrava do mesmo jeito.  O choro se fez ouvir mais alto.  Parecia vir do quarto dos internos. Fui até a porta do corredor e a abri len-ta-men-te.  A pouca luz que adentrava  o corredor desenhava  a silhueta de um bebê , em pé,  escrevendo algo  próximo a porta, a beira do quarto.  Ele  virou-se  para mim. Tinha algo na mão, uma caneta ?! Minha caneta!.   Seu rosto me pareceu familiar... a pálpebra do olho esquerdo lacerado.... o bebê abriu a boca, chorou assombrosamente e entrou correndo no quarto.  Maldição!...

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 2



Capítulo 2

Em menos de uma hora desfiz duas certezas que   tive por toda  a vida:   a primeira,  de que  nada sobrenatural existe e a segunda,  de que se um dia visse algo  “anormal”   sairia correndo para o lado oposto do fenômeno.  Agora estava eu  a entrar pelo quarto escuro dos internos a busca de um bebê supostamente  morto. Morto. Melhor,  ele supostamente nem nasceu, afinal,   aquele bebê era o mesmo do meu sonho. Possível? Não, é  impossível.  Mas então tinha que provar para mim mesmo que foi uma ilusão. Ou não foi?
Há instantes atravessei correndo o corredor  entrei no quarto.  Se o capeta do bebê estivesse ali eu acharia. O quarto estava escuro, entrei pela porta que dava acesso a parte do quarto que tinha  o armário e a janela de vidro. Um nesga de luz  entrava pelo vidro da janela.  Iluminava a cama que chamávamos de fototerapia,  uma interna dormia calmamente...   Lembrei que o meu celular era daqueles que tinha uma lanterna.  Bem  a calhar neste momento.  A luz do celular iluminava  o ambiente   razoavelmente.  Um balde de roupa, alguns  internos dormindo e salivando  os   travesseiros. Nenhum evento estranho. Ajoelhei,   tantos COs  e nunca tinha olhado debaixo do beliche. Olhei, nada de espetacular, uma moeda , dois sapatos,  minha caneta?!   Ou realmente deixei cair  no chão ao levantar da cama ou o desgraçado não é uma ilusão e a  deixou aqui. Era uma caneta Bic, duas cores: azul e vermelha.  A parte vermelha estava Travada. Nunca uso a vermelha. Corri até a porta onde tinha visto o bebê escrever algo na parede,  me abaxei  no corredor,  procurei algo  escrito mais ou menos na a altura  dele,  e lá estava , de vermelho .  Não podia dizer que eram palavras, mas com certeza eram desenhos... Símbolos, eram símbolos. Na verdade, eu já  os tinha visto em outro lugar...no meu braço, no  pesadelo.  E o que significavam? Somente  Deus sabia.
                 

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 3



Capítulo  3
            Um  doze romano, algo que parece um estetoscópio, uma cruz dentro de um círculo. E o que isso quer dizer?  Talvez não queira dizer nada. As paredes da Climério, principalmente do quarto dos internos  são bastantes rabiscadas de canetas, lápis, pincel de quadro branco. Uma  memória  dos internos que já passaram pela maternidade.  Alguns depoimentos são idiotas, outros interessantes. Houve épocas que  as escritas nas paredes  eram  uma distração  para os que estavam presos de plantão , mas com o tempo  havia tantas  e tantas coisas escritas, que o quarto se transformou em  um quadro  de arte moderna – poluição visual pura.  Mas havia no quartos dois depoimentos que chamavam-me a atenção. Um ficava  em baixo do lastro de cima de uma das beliches e dizia:  “a morte é o descanso da vida para aqueles que não sabem viver”.  O outro  falava, nada poético, nada profundo, nada muito inteligente, mas  com um significado  que só um interno saberia decifrar:  “gente, gente , gente englobei a residente”. Eu avisei, nada muito  profundo ou poético,  mas  como diria um amigo meu, como a mente humana é complexa, há coisas que não é possível decifrar , apenas vivenciá-la.  Eu mesmo já tinha sido “englobado” pela Residente uma, duas vezes. Miserável.   Gestante pronta para pari, eu  já todo paramentado, os dedos coçando, só esperando o  recém-nascido, quando chega a Residente com um sorriso amarelo na cara. E faz todo o parto. Completamente.  Lá vai mais um interno saindo da sala de parto sem nem  sujar as luvas. Paciência.  Oh palavrinha sem jeito.   Pois bem, o  mais provável é que eu já tenha visto estás marcas antes, mesmo sem prestar atenção muito nelas. E  com diria Freud, o meu inconsciente apenas sublimou a sua existência  no  pesadelo... Foi isso. Com certeza. Não há outra explicação...

Tocô- toco -  tocõ

O  Maldito som da cardiotoco  novamente.  Fui o mais rápido que pude até o pré-parto. O som continuava. Olhei o cardiotocógrafo, desligado, tudo calmo, nada fora do lugar. Ou quase nadaA técnica não estava  mais dormindo na  cadeira. Tinha sumido. Ou apenas tinha indo no banheiro. Nestas horas a nossa mente faz conjecturas absurdas. É preciso concentrar. O som parecia vim da sala da televisão,  caminhei até lá,  tudo  como antes, os técnicos espalhados pelo sofá, a sala escura. Não totalmente.   Na sala de televisão havia uma porta que dava acesso a sala do computador. Uma sala pequena, confortável, com sofá,  uma mesa, cadeiras  e, por assim dizer, um computador.   A luz escapava pelas frestas da porta.   Andei em sua direção e a cada passo o som da carditotoco ficava mais alto. Toco-toco-toCO-TOCO. Nunca, sob nenhuma hipótese o cardiotocógrafo estaria na sala de computador,  seja o que fosse que estivesse fazendo o som , certamente não estaria dentro daquilo que   considero como  “ tecnicamente normal”.  Segurei firme a maçaneta da porta, o medo me fez parar, poderia simplesmente desistir agora,   não abriria a porta, voltaria para minha cama,  acordaria amanhã e evoluiria os meus pacientes na enfermaria.  Perfeito. Seria um CO normal, como outro qualquer. Hesitei por alguns instantes. Dane-se. Abri a porta. 
...A sala estava  parcialmente iluminada,  a luz vinha do computador que estava ligado. Na tela do computador  apareceu um traçado característico. O   traçado do cardiotocógrafo, com uma linha de base  em oitenta bpm. O normal nunca era menos que  cento e vinte. Depois os símbolos apareceram na tela  por alguns segundos. Por fim,  um rosto de um bebê com a pálpebra  esquerda lacerada. A tela ficou toda branca e o computador  desligou. O som  finalmente desapareceu.

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 4



  Capítulo  4

Algumas coisas são lendas na  Climério, uma delas é realizar uma cesárea após as duas da manhã, a outra é   o sinal da internet sem fio do computador funcionar.  Se tem algo  que da mais raiva do que  ver uma assombração no seu horário da noite, é  não conseguir ter acesso a internet quando se precisa.  O  sinal era péssimo. Tentei de todas as formas, mas a praga desgraçadamente se negava funcionar. Sentei na cadeira, desolado.  Quando o computador desligou, eu fiquei parado na porta. Não sabia o que fazer, talvez devesse acordar os técnicos de enfermagem  e dizer sobre o  ocorrido, mas depois desistir da idéia. Ora, quem ia acreditar  que  eu tinha visto um bebê morto   pentelhando pelo CO.

 “ pessoal , estou acordando vocês para informar que tem um  nati-morto  correndo  pelo pré-parto , acabando com o meu horário do plantão”

 No máximo o que eu ganharia era uma receita de um anti-psicótico e uma   folga  por  estresse. Paciênciaterceira vez que digo isso em tão pouco tempo. Tinha  adentrado  a sala de  logo que o computador  desligou. Procurei o interruptor de luz,   pelo menos esta funcionava. Aproximei-me  do  CPU.  Mas por que raios  o bebê  apareceu no monitor? Se não fosse cético e acreditasse em mensagens do além, acabaria   reconhecendo que o  danado estava tentando me dizer algo.  Primeiro foi o sonho,  depois  os símbolos na parede e agora o computador.. . Quase por instinto  sentei na cadeira e apertei o botão de Power. Duas  tentativas e  ele ligou.  Alguns segundos depois estava tudo funcionando. Então uma idéia me veio a cabeça.  Poderia ver se achava algo na net sobre os símbolos. Dez minutos depois  deste primeiro pensamento, ainda estava tentado ter acesso  à internet. Na Climério assim como em toda UFBA  o sinal da internet era  sem fio.   Na sala do computador esse sinal teimava misteriosamente em desaparecer. Era uma assombração dos infernos, constante e irritante. Agora estava eu aqui, sentado e frustrado, lendo um recado colado ao lado do CPU,  - por  favor manter o computador nesta posição , devido ao sinal da internet 

-  Que posição cara pálida,  de litotomia?.  Um sentimento de raiva foi tomando-me.  Porcaria!  Dei um soco no CPU, que balançou e escorou-se na parede. E não é que o desgraçado do sinal    apareceu.  Está era a posição.

 Lets go, baby! Agora minha investigação vai  começar. Não sou nenhum    Robert Lagdon, mas  quem tem o Google jê é meio  Sherlock Holmes.
             Os meus dedos pararam sobre  o teclado, o que escrever?  Os desenhos na parede como já disse antes  não eram bem palavras ...parei e fiquei olhando para tela do computador... se eu fosse  um enigma   feito por um fantasma  onde eu me esconderia?
Elementar meu caro Watson!   Saber com funciona o Google é saber quais são as chances de sucesso em minha busca.  O Google é basicamente um banco de dados inteligente. Os dados são agrupados em tabelas e ordenados de acordo com palavras-chave, como autor ou título. O  que o Google faz é acumular cada página da Web num banco de dados. O endereço da página, o nome, e as palavras mais freqüentes e suas respectivas freqüências são todas incluídas na ficha daquela página. O mais importante, todas as outras páginas para as quais a página linca também são guardadas. Quando você digita a sua busca na caixinha do Google, o software traz todas as fichas cujo conteúdo casam com sua busca.  Mas o que pouca gente sabe, é que qualquer um pode ficar  na primeira pagina do Google, basta  cadastrar o site em sites de busca específicos,   como o Rec6. Em resumo  saber de tudo isto me fazia ter uma certeza :  achar o que eu quero  não será  uma tarefa fácil.
            Os dedos ainda parados  sobre  o teclado. Ora,  o que escrever?  Os desenhos não  eram bem palavras. Humm... Símbolos! Pois bem, digito veloz mente:

-Símbolo. 
0,21 segundos:  aproximadamente 29.400.000 para símbolo 
PerfeitoBalancei a cabeça negativamente.

 Milhões de coisas, nenhuma do meu interesse “símbolo - wikipédia, a enciclopédia livre”,  “o conceito de símbolo, símbolo perdido,  o símbolo da medicina.... o símbolo da medicina: tradição e heresia”.  Vamos tentar filtrar,  colocar em  imagens.

- 214.000 resultados aproximadamente
.
Havia símbolos, japoneses,  de marcas, humorísticos, gregos...  egípcios. Já estava desistindo quando  por volta da décima sexta página uma imagem me chamou a atenção. Símbolos egípcios.   O  círculo com  a cruz  vazia parte de um conjunto de símbolos astrológicos que representavam os planetas, o meu símbolo em questão representava a terra. E daí?   Descoberta sem frutos. Vamos tentar o Numero doze romano – XII..


A pesquisa do doze foi mais difícil que o do círculo.  Dez minutos depois, página trinta de pesquisa e nada. Então  uma imagem  com  uma carta  em  que um dos cantos dela  aparecia o número III,  me fez ter uma dedução  lógica: e se o numero doze for a ordem de  uma carta.

- Carta XII
Aproximadamente 227.000 para carta XII (0,06 segundos) 

Muitas imagens. Porém  já na segunda pagina uma carta em especial me chamou a atenção . Abrir o link,   dei sorte.
            O doze  significava a décima carta do tarôt, onde  no ápice havia um  círculo com a cruz, embaixo havia a frase  the  hanged man – o  enforcado. Fui lendo no site sobre o assunto, e a Cada linha algumas coisas ficavam claras, outras não. A carta do  Enforcado continha um dos simbolismos mais complexos do Tarôt. Ela mostrava a imagem de um homem suspenso por um pé, amarrado em uma viga de madeira, a qual está apoiada entre duas árvores ou pilares, cada uma com seis ramos cortados, onde significa o mundo material .
O Enforcado representava  a sujeição e o sacrifício aos quais são submetidos todos aqueles que perseguem um ideal. Também está relacionado com o tema da levitação, do vôo durante os sonhos e do isolamento dos místicos. As pernas cruzadas denotavam  a predominância do mundo material sobre o espiritual, o pé não amarrado indica que a situação não é incorrigível.
 Não sei  ainda porque o nati-morto queria tanto que eu soubesse sobre estes dois símbolos, mas já era alguma coisa , só faltava agora  o desenho que parecia  um estetoscópio. Já este foi mais fácil do que eu imaginava. Voltei ao site onde tinha encontrado os símbolos astrológicos, Neste site havia vários  links com diversos símbolos. Gregos, troianos, egípcios, símbolo  novos e antigos, cristãos e satânicos.  Ele tinha que estar aqui. Fui baixando o rotor do mouse, uma  grupo de símbolos me chamou á atenção- símbolos coptos

“A Linguagem Copta, uma das últimas linguagens utilizadas no Egito Antigo, na qual foi escrita e primeira versao do Novo Testamento. O copta é uma língua que floresceu por volta do século III no Egito Antigo, da família lingüística camito-semítica ou afro-asiática. O alfabeto copta é uma versão modificada do alfabeto grego, com algumas letras demóticasutilizadas para representar alguns sons não existentes no alfabeto grego. Como língua cotidiana teve seu apogeu entre o século III e o século VI. Ainda hoje permanece como língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja Católica Copta.”

 O símbolo do estetoscópio  significava uma letra egípcia antiga CH...
-Santo Deus.
Em frações de segundo  uma luz se abriu em minha mente.   Só podia ser isso, não havia outra explicação.  Saí correndo  em direção ao pré-parto.  Olhei o quadro branco preso a parede. E confirmei a minha suspeita. O  CH fazia referencia a mulher no pré-parto, a com DHEG grave.  O pesadelo não era somente um pesadelo, era uma premunição.
Ela mostrava a imagem de um homem suspenso por um pé, amarrado em uma viga de madeira, a qual esta apoiada entre duas árvores ou pilares”    
O homem poderia ser  o bebê,  a corda amarrada talvez fizesse referencia ao  cordão umbilical,   as duas arvores ou pilares  -  a vida  e a morte, mãe e filho.
Lá estava ela, deitada. Somente  agora percebo que ela não estava dormindo, estava obnubilada,  gemendo baixo de dor.    As frases  do site ecoavam em minha cabeça
A carta do  Enforcado continha um dos simbolismos mais complexos do Tarôt
O cardiotocógrafo estava perto  do leito dele, arrastei ele até próximo a ela,
Neste sentido, os doze ramos cortados expressavam a extinção da vida.
Não queria traçar   uma cardiotocografia, mas serviria par ouvir o batimento do coração do feto.
 As pernas cruzadas denotavam a predominância do mundo material sobre o espiritual, o pé não amarrado indica que a situação não é incorrigível.
Espero que o feto ainda esteja vivo
A mulher estava  coberta até a altura dos busto com um cobertor branco. 
- mãe? A chamei carinhosamente como costumava chamar todas as gestantes , ou  puerperas .
- mãe,  você esta me ouvindo? vamos escutar o batimento do nenê? Vamos, tire  esta coberta...
 Fui retirando  a coberta. A mulher era gorda, o rosto redondo. A medida que a olhava uma sensação estranha  foi tomando-me, até que  sua barriga  enorme não deixou  esconder o que estava por debaixo do cobertor derramado entre suas pernas-  Mecônio, grosso e  volumoso mecônio. Sofrimento fetal grave,.... todo o pesadelo  se passou na minha mente.   Afastei as pernas da mulher,  o cabelo da criança já bojava no canal vaginal.  O ar faltou-me por instantes.  E as únicas coisas  que conseguir dizer  foram:
  - Mecônio..., plantonista... Sala de parto... Sala de paaaarto!

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 5


Capítulo 5

Poucas coisas são piores do que fazer um parto na madrugada. Uma delas é fazer um parto  de uma paciente com DHEG e com mecônio. Não apenas pelo risco de convulsão,  uma convulsão intra parto, poderia trazer conseqüências danos  para mãe e para o feto.  Quanto ao mecônio, representava sofrimento fetal grave. O mecônio nada mais é do que o própria fezes do feto.  É uma reação primitiva ao sofrimento,  centopéia, lagartixas,  ratos. Qualquer animal vertebrado ou invertebrado em situações de extremo sofrimento liberam fezes. Não é diferente para o feto.
Tudo aconteceu muito  rápido.  Mal  vi que  a presença do mecônio , o bebê bojava  pelo canal de parto.  Ainda, pedi a  mulher para não  fazer força, para retardar um pouco o parto. Mas ela não estava fazendo.

- Sala de parto. Gritei novamente. Algumas técnicas apareceram
- Chame o plantonista,  a residente.  Todo mundo!

Uma técnica de enfermagem saiu correndo,  em direção ao quarto.
droga, vai nascer aqui.  O bebê coroava, não vai dar tempo. Calcei  as luvas.  Tão rápido quanto pude.
A mulher gemeu mais alto. Aparentemente tinha recobrado   parcialmente a consciência.  O gemido se transformou em um grito e o bebê teimava em aparecer e desaparecer pelo canal de parto.

- não vai ter passagem. Pelo amor de Deus , chamem o plantonista!

Não tinha muito o que fazer, apenas proteger o períneo , com a mão para que não houvesse uma laceração dos músculos. O mecônio escorrendo a cada  contração uterina.

- Vamos mãe faça  força. Na próxima contração, força, força. Ele não pode mais ficar onde está.

Os gritos da mulher   estremeceu toda a Climério e  a cabeça do bebê bojou completamente pela vagina.  Pronto. Pensei. Agora  é só retirar os  ombros. Mas o bebê  não saía. O ombro estava preso.  Puxei  fracamente,  o medo de  lesar o pescoço da criança   era tão grande quanto o de deixar ele naquela situação.  Até que,  como um super herói que surge em momentos de perigo,  o plantonista apareceu .  As luvas já calcadas. 

-Saia. Ele disse.- Vai minha filha  empurre! Empurre!

            O plantonista segurou o bebê colocando os dedos entre a cabeça e o pescoço.  E puxou.   Vigorosamente. O fato da mulher está parindo sobre a cama do pré-parto dificultava  a destorce de ombro. O plantonista puxou novamente, mais forte ainda.  Imaginei,  vai  decepar a cabeça . Mas como  uma mágica  e com muita habilidade ele  retirou o bebê. Parado. Sem uma única respiração. Tudo tão rápido, que mal deu  para ouvir o plantonista  dizendo:

- Chamem o neonatologista.  A criança tá em parada,- temos que   ressuscita –lo. E saiu correndo  com o  RN na mão, em direção ao ressuscitador.

Memórias do Cárcere Obstétrico - Capítulo 6



               
Capítulo6


Prover calor, posicionar a cabeça,  aspirar secar,  estimular ,  reposicionar e reavaliar.  Gostaria que essa fosse a única etapa do algoritmo de reanimação do RN, mas infelizmente não era. O bebe nasceu , sem respirar, mergulhado em mecônio.  O plantonista já tinha checado os batimentos fetais, menor que sessenta, bem menor. Ele já tinha oferecido oxigênio inalatório, mas  o RN continuava cianótico , sem mudança.    O plantonista aspirava pela boca do nenê o máximo de mecônio que podia. A impressão que dava que ele tinha engolido todo o mecônio do mundo.

-Pegue o ambu. Monte.  Ele disse isto,   enquanto uma das mãos já procurava algo na bancada de medicamentos.

 Montar o  ambu? Não lembrava muito como fazia isto. Apenas tinha visto algo nas aulas de neanatologia.   Mas o  cérebro  humano é uma maquina operante, e eu, sabe Deus como, montei .e lá estávamos nós oferecendo ventilação positiva para o bebê. Trinta segundos depois ele  ainda tinha freqüência menor que sessenta.  A esta altura dos acontecimentos, a sala já estava cheia de gente,  enfermeiros, técnicos de enfermagem, os internos. Nada do neonatologista. 

- Onde esta o neonatologista?- berrou o plantonista.

A preocupação dele  era que o bebê necessitava entubar. E convenhamos sem treinamento não há eficiência. Teríamos que nos virar com o ambu mesmo. O plantonista começou a fazer a reanimação cardíaca do RN, ao contrário dos adultos, no RN freqüência cardíaca menor que 60 e persistência da cianose, a massagem era  mandatória. Mais trinta segundos. O tempo agora, era o inimigo.  Nem eu sei se respirava  mais. Tudo se processava  ora  ultra rápido, ora  super lento.

- Adrenalina, me dêem  adrenalina.  Disse o  plantonista olhando para as técnicas de enfermagem.
-Doutor, olhe,  olhe... Disse eu  apontando para o bebê,  que  começava a chorar,  ainda engasgado,  mas chorando. 

A cianose indo embora. Houve uma euforia e uma comoção geral na sala.  Alguns gritavam  emocionados isso, isso!, Algumas internas choravam. Eu apenas  mantinha  a oxigenação do bebê. Minha vista nublada por lagrimas. O plantonista soltou um sorriso preso.

- Conseguimos.

 Mais alguns instantes, o neonatologista chegou e a rotina do parto pode continuar.  Eu olhava para o bebê, as mãos  enrugadas,  o choro ainda um pouco abafado. A pálpebra do olho esquerdo normal. Sem lacerações. Era um menino. A mãe olhava, com um olhar de felicidade. Estava exausta mais feliz. Muitas coisas não foram normais esta noite.  E que bom que não foram.

Memórias do Cárcere Obstétrico - Epílogo

Epílogo

O sol  já tentava preguiçosamente aparecer no horizonte. Alguns raios de luz deixavam o céu meio cinza. Assim como o banco em frente  ao estacionamento, próximo à admissão. Fiquei sentado lá esperando o dia  acordar, calmamente, olhando o monumento de bronze que mostrava a face do Dr. Climério de Oliveira.  Pensei  no boato que diz que a  Maternidade era assombrada pelo espírito dele.  O velhinho acordava  e perseguia  os internos pela  maternidade. De qualquer sorte, se ele  viesse  assombrar os corredores da maternidade, hoje,  com certeza  eu o agradeceria. Afinal, graças a  maternidade que ele ajudou a erguer,  eu  construir lembranças que jamais esqueceria. 
            Já estava quase  levantando-me quando a residente apareceu na porta. O rosto inchado de sono.

- O que foi que perdi? Ouvi uns gritos, algo parecido. Estava com tanto sono... Disse ela com a voz ainda rouca.
- Um parto.  Um daqueles.
-  Pooooxa. Porque ninguém me acordou. Gostaria de ter feito.
- Que pena.  Levantei do banco.  Peguei no ombro dela.   Olhei para ela com um olhar de consolação e com um  sorriso querendo escapar pelo canto da boca

– foi o melhor que já fiz.

“Gente, gente, gente  englobei a residente”

Adentrei pelo pré-parto e fui até a admissão.  A emergência já começava a encher de gestantes.  Lá, uma grávida  com  uma  face de   dor e  uma ficha de atendimento na mão,  pronta para ser atendida.  Abri a porta da emergência. A Climério não para.  Nem nós. Nunca.

- Próxima.
   Aos Internos de Medicina  da UFBA
- Minha humilde  homenagem aos que  

de verdade 
fazem a Climério ser o que é. 

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